Por LiteraturaBr
25 de setembro de 2014
O mar sempre tem razão, de Munique Duarte
por Munique Duarte
Visto de cima o mar é uma grande placa azul que nunca erra. O mar sempre tem razão. Balançando na pequena barca, as certezas também balançam. Mas certezas são inabaláveis. Em seu vestido preto de corte duro, pensa no mar e suas conclusões. As águas correm com força e sempre chegam. Não importa aonde ou como, mas sempre chegam. Chegar era o objetivo da pequena viuvinha em trajes sérios. Viúva de seu próprio passado morto. Ao redor, alguns olhares a espetam. A tarde demora a findar. O sol apareceu depois de quatro dias, retirando o cinza das águas frias. O destino ainda está longe. Requer muitas noites de sono. Pesadelos a atormentavam. O minúsculo navio era sempre atingido pelo inimigo e levava horas cruéis para adormecer na areia do fundo do oceano. Lentamente despedia-se do horizonte. Ela sempre desmaiava e acordava respirando debaixo d'água em outra cidade, cheia de flores e mulheres e homens ruivos que a ofereciam mais flores e casas para se hospedar. Falavam um idioma estranho, como muito requebrar de língua, mas compreendia e rejeitava as hospitalidades, até acordar no frio da madrugada sobre um fino colchão sujo. Mulheres para um lado, homens para o outro. Mas o dia era de todos tomando sol sobre o casco do navio. Lagartos enjaulados na esperança de rotinas melhores.
Sozinha, não tinha mais passado. O sangue em suas veias não se repetia em mais ninguém. Viuvinha de olhos secos. A vinte seis dias de seu destino. Apenas uma lembrança a assaltava. Uma casa enorme, muito antiga, com portas enormes onde passaria um gigante. As janelas com os vidros meio quebrados. As escadas com degraus de castelo. Todas as camas pareciam de livros encantados, com lençóis muito brancos. Havia um homem que sempre dizia que ela era o seu tesouro. Imaginava um baú com moedas faiscantes e colares de pérolas. Todas as pérolas do mundo. O homem a tirara da rua. Ela adorava comer batatas no fim da noite. Seu quarto era pequeno, com perfume de amora. Era um mistério de onde vinha o perfume. Assim como a visita de tantas pessoas que acontecia nos fins de semana. Ficava a maior parte do tempo no quarto, brincando com uma boneca vestida de rosa. Às vezes, passeava no jardim com o homem que resolveu criá-la. Ele era calado, já bem velho. Sempre dizia que um dia ela estaria pronta. E que seria a mais linda de todas. Não entendia nada já pensando nas batatas do jantar.
Um dia um homem calvo entrou seu quarto. Ela nunca o havia visto pela casa. Vestia-se bem. Fechou a porta e começou a conversar assuntos simples. De olhos vivos ela o observava. Os olhos deles pareciam duas bolotas de ferro frio. Naquela noite enjeitara as batatas do jantar. Uma dor lhe subia do umbigo e fazia seus olhos se encherem de lágrimas. Lembrava-se das mãos geladas do homem com olhos de ferro. Tantos outros homens com olhares de metal ainda entraram em seu quarto depois daquele dia. Por tantos outros dias, por tantos outros anos.
O mar enorme se acinzentava com o fim do dia. Olhos ao seu redor a espetavam, mas não a sangravam. Era um coágulo vestido de preto. Viuvinha debaixo de gaivotas. Seus olhos secos de amora não se importavam mais. O destino incerto ainda aguardava dias balançando sobre a água. O mar é uma placa azul enorme que se desfaz toda a noite. O mar é uma cidade enorme cheia de flores com vagas para se hospedar.
Munique Duarte nasceu e vive em Santos Dumont-MG. É jornalista sindical, formada pela UFJF. Já colaborou em sites, revistas e jornais literários e foi participante da Mostra de Tuiteratura, em São Paulo. Em fevereiro de 2014, lançou o livro de contos Espelho Oxidado, pela Editora Multifoco. Bloga em textosimperdoaveis.blogspot.com. Em 2015, lançará seu primeiro romance.