18 de setembro de 2014

Voo feito de fel

Ela sentou-se à calçada porque era aquele seu local preferido. De hoje.

Ela nunca teve locais preferidos. Na verdade qualquer espaço feito de silêncio sólido, daqueles que a maioria das pessoas odeia, ela adora.

Ainda mais hoje.

Hoje era dia grande como uma manhã que já nasce com promessas de demorar-se até alcançar o almoço. E, até chegar a hora do almoço, há um longo caminho de horas que se desfiam inteiras sem desconfiarem o porquê. Horas vãs que vão e que vêm como um voo feito de fel.

Nada se digna a acontecer que ultrapasse o limite das horas ou que as faça parar, ou melhor ainda - pensou ela - que as faça voltar num retroceder de minutos sucessivos em que só ela se dê conta.

As pessoas nos seus afazeres normais, correndo, atravessando as ruas, carregando as compras e os ponteiros a rolar para trás. Só ela, o relógio e o silêncio a dominar o que todos aprenderam com o tempo.

Chegado o almoço, é tarde. A tarde é uma fortaleza de grades em que se prende o sol. Ficam ali os raios a guiarem-se por todos os lados, uma hora em um ponto, às duas, bate na parede, às três,escorre pela porta, às quatro, derrama-se pela calçada e às cinco, como que despedindo-se, alcança a rua. Mas, todos os dias, eles voltam ao mesmo lugar e lamentam-se de não poder correr dali. E assim, a tarde caminha vazia cheia de luzes e barulhos, a não ser pra ela, que carrega nos ouvidos, o mais abissal e feliz dos silêncios.

 

Ayla Andrade In "O Mais Feliz dos Silêncios"

Ed. Sustânsia, 2014. Fortaleza-CE