Perfil Poesia Brasileira, Lêdo Ivo: “Sou aquele que está além de mim”
Esconderijo
A palavra-chave
sempre se esconde
atrás da porta
(Lêdo Ivo)
Nascido em 18 de fevereiro de 1924 na capital Alagoas, Lêdo Ivo foi jornalista e escritor, atuando em diversos planos da literatura. O alagoano escreveu poesia e prosa, deixando um acervo precioso após sua morte em 23 de dezembro de 2012. Sua versatilidade na escrita rendeu a ele uma particularidade em relação aos outros escritores de sua geração – a célebre Geração de 45 -, o que fez com que fosse definido “[o poeta] de versos longos e nome curto” por Sergio Buarque de Holanda.
Após morar por três anos no Recife, onde contribuiu com a imprensa e obteve maior experiência literária, Lêdo mudou-se para o Rio de Janeiro aos 20 anos de idade para estudar Direito na Universidade do Brasil. No Rio, continuou a trabalhar para a mídia como jornalista e escritor, lançando seu primeiro livro no mesmo ano em que chegou, 1944. Contra a vontade do pai, o escritor se dedicou à carreira literária e nunca exerceu a profissão de advogado, na qual se formou. Atuou, também, como tradutor e crítico literário.
Seu livro de estreia e o sucessor – As Imaginações (1944) e Ode a Elegia (1945) – denotavam em si grande carga de características da prole neomoderna que acabara de se formar naquela década, rompendo com a estética de 1922, por isso fora integrado àquela turma.
Mas o poeta era um verdadeiro camaleão, pois mudava de cores e também trocava a pele. Por ser flexível, Lêdo não se ateve a um só tema ou gênero em sua carreira literária. Além de exímio poeta, escreveu ensaios, crônicas, contos e romances (como o notável Ninho de Cobras, 1973). O sinuoso caminho da vida e as transformações durante a mesma são os assuntos mais valorizados em sua obra, fazendo do “eu” a grande estrela da produção do autor. Seus poemas iam de sonetos a haicais, exemplificando sua variação, e eram de grande objetividade apesar do conteúdo perceptivelmente profundo. Seguindo sua primeira publicação, foram lançados ao menos dez livros do autor em um período de apenas dez anos e seguiu-se assim pelos subsequentes, abrindo espaço para a sua vasta criação.
Lêdo teve algumas de suas obras traduzidas para diversas línguas, fato que rendeu a ele prêmios internacionais e convites para representar o país eventos culturais no exterior durante toda sua vida. No Brasil, foi condecorado com muitos prêmios, dentre eles o Prêmio Mário de Andrade e o Prêmio Jabuti. Se já não bastasse tanta honraria, foi eleito em 1986 para a Cadeira n° 10 da Academia Brasileira de Letras, como quinto ocupante, sendo recebido no ano seguinte.
No céu de Lêdo, todas as estrelas eram vistas a olho nu, tamanha clareza que cultivava no que escrevia. E não eram só estrelas, outros objetos além-Terra também se destacavam pelo seu constante gingado entre propostas diferentes. Lêdo não foi um simples e retrógrado alquimista hermético, foi um cientista vigente que operou as palavras em fórmulas concisamente versificas e maleáveis. Por isso, é peça fundamental na literatura brasileira em tempos em que o recheio literário precisa ser extenso e acessível. Lêdo é o pássaro que busca alimento sortido e de fácil deglutição para suas crias.
POEMAS
A partícula
Nada sei sobre mim,
quem sou ou de onde vim.
Não sei para onde vou
quando me for para onde.
Não sei se esse ir me expõe
ou se esse ir me esconde.
Sei apenas que o sol
clareia meu jardim
onde uma lagartixa
me separa de mim.
Ignoro quem é este
que diz ou é ser eu.
E já que nada sou,
nada tenho de meu,
e nem mesmo de mim,
como ser um pronome,
essa ínfima partícula
que de si e dos outros
tem tanta sede e fome
e em lenta combustão
se queima e se consome?
Nem mesmo a vida resta
quando a gente regressa
do passeio à floresta.
Tudo na vida some.
E o vento sopra e leva
as letras do meu nome.
A cama
Amor silencioso!
Só a cama gemia,
parceira insaciável
Oceano secreto
Quando te amo
obedeço às estrelas.
Um número preside
nosso encontro na treva.
Vamos e voltamos
como os dias e as noites
as estações e as marés
a água e a terra.
Amor, respiração
do nosso oceano secreto.
Firmamento
No dia cheio de estrelas
como a noite aguardo o vinto
que vai espalhar a minha alma
no firmamento.
Na noite da ventania
a morte será um frêmito,
o luzir de uma luz negra
no firmamento.
E tudo será silêncio
e será esquecimento
na eternidade da noite
e do vento.
Conselho
Esconde a tua vida.
Guarda o teu segredo.
Tudo, neste mundo,
é engano cego e ledo.
De manhã é noite.
Mesmo à tarde é cedo.
A vida é meandro
sem qualquer enredo.
A ninguém confesses
teu amor ou medo,
teu sonho acordado.
Sê um caracol
fechado em si mesmo
na manhã de sol.
O futuro dos corpos
Quando não tivermos
mais nenhum desejo
ficaremos juntos
onde estiver Deus
no desfiladeiro
que saqueia as almas
e devolve aos corpos
a nudez final.
Quando apenas formos
o sopro do vento
e a pureza da água
a nossa união
resplandecerá
no céu libertado.
A vã feitiçaria
Invento a flor e, mais que a flor, o orvalho
que a torna testemunha desta aurora.
Invento o espelho e, mais que o espelho, o amor
onde eu me vejo, vivo, num sarcófago.
E a vida, este galpão de sortilégios,
deixa que eu a invente com palavras
que são dragões vencidos pela mágica.
E não me espanta que eu, sendo mortal,
sujeito à injúria de tornar-me em pó,
crie uma rosa eterna como as rosas
inexistentes nesta flora efêmera.
Sonho de um sonho, a vida, ao vento, escoa-se
em vãs lembranças. Minha rosa morre
por ser eterna, sendo o mundo vão.
O coração da liberdade
Estive, estou e estarei
no coração da realidade,
perto da mulher que dorme,
junto do homem que morre,
próximo à criança que chora.
Para que eu cante, os dias são momentâneos
e o céu é o anúncio de um pássaro.
Não me afastarei daqui,
da vida que é minha pátria,
e passa como as águias no sul
e permanece como os vulcões extintos
que um dia vomitam sono e primavera.
Minha canção é como a veia aberta
ou uma raiz central dentro da terra.
Não me afastarei daqui, não trairei jamais
o centro maduro de todos os meus dias.
Somente aqui os minutos mudam como praias
e o dia é um lugar de encontro, como as praças,
e o cristal pesa como a beleza
no chão que cheira à criação do mundo.
Adeus, hermetismo, país de mortes fingidas.
Bebo a hora que é água; refugio-me na estância
quando a aurora é mistura de orvalho e de esterco,
e estou livre, sinto-me final, definitivo
como o tempo dentro do tempo, e a luz dentro da luz
e todas as coisas que são o centro, o coração
da realidade que escorre como lágrimas.