Queria escrever o mundo, mas resolvi escrever Maria
Para ouvir: Assum Branco, de José Miguel Wisnik, na voz de Gal Costa.
Ou Galos, Noites e Quintais, de Belchior.
Beleza –É algo relativo. Mas, sem dúvidas, não há relatividade alguma na beleza dos olhos dela. Os olhos dela são um pedacinho de mar onde ele não mais existe. A brancura, em castigo do sol, só não encarde pelo talco em pó e pela lavanda de alfazema trazida pelo mascate da feira. Parece morar dentro dela alguma grande guerreira, quem sabe uma Iracema sertaneja disfarçada de mulher branca, ou uma Moura encantada da mitologia Basca.
Eu queria era vê-la moça, lá por volta de 1950, feliz e alva. Os cabelos loiros, soltos e devidamente penteados para mais uma missa de domingo. Consigo até sentir o gosto dos doces das quermesses e a euforia dos bingos e das rifas em festas da padroeira. Pensar nela me enche de saudade. E a saudade dela é a saudade das coisas dela, do passado empoeirado escondido pelos cantos da casa. É a saudade de lavar os collants e anáguas com sabão canoeiro, e com a mesma água refrescar o suor que escorre pelo corpo. É a saudade do canto de canários, nambus e bem-te-vis, que é a mesma saudade do sertão florindo em puberdade. A saudade de pular a cerca e tomar banho no riacho com sabão de aroeira. Saudade dos pés de oiticica, de comer as frutinhas de juá e também os bolos de puba e os chouriços em dia de festa... Ah, saudade dos melaços de cana e do som da rabeca de Seu Quincas Firmino. A nostalgia, que chamo de saudade, talvez venha das lembranças apropriadas dos álbuns e monóculos antigos trazidos do Juazeiro, ou talvez, das histórias repetidas na beira da calçada e das tardes que eu me trancava nos baús forrados de revistas e jornais velhos.
E as dores? E a falta de carne e água limpa? E o vazio solitário que ocupa a gente na desesperança? Isso também está na memória. Pensar nos sofrimentos da terra rachada por onde ela passou é tão amargo quanto a água barrenta do açude. O gado morto. O prato raso de comida. As crianças morrendo de varíola, caxumba, diarreia ou gripe: “Segura na mão de Deus e vai...”.
Sertão de vidas secas. Para ela, uma vida fértil, 14 barrigas, três abortos e um menino que não se criou. Mesmo com toda reza e toda crença, toda mudança e toda reforma – nos dias de agora, água pouca ou água nenhuma. E os filhos bem paridos e bem casados não voltam temendo a seca. A vida agora é um balançar de rede, é colocar comida pros gatos, ver a novela e esperar um pingo de chuva aqui e outro acolá.
Quando viajo para encontrá-la, penso na sorte que tive em ter o mesmo sangue forte de Maria. Na distância, vivo vendo-a por aí. Seja na avó que em uma mão carrega sacolas e na outra segura a mão da neta pelo centro da cidade. Seja na senhora negra e de cabeleira branca, que lava ternamente as mãos da neta com shampoo que retira da sacolinha de plástico, no banheiro da universidade. Ou especialmente vendo Dora, em Central do Brasil. Ah, Dora é a imagem cinematográfica de Maria. Um batom pelo final, uma bolsa lateral bem junta ao corpo, uma pausa na lanchonete da rodoviária para um refrigerante; a mão pregada à mão da criança, a vontade de carregá-la por muito tempo, porém, com a certeza inevitável que a perderá.
Lembro-me da época das especulações em torno do bebê real. Eu só conseguia pensar: pobre criança! Não terá uma vovó real para lhe dar angus, papinhas, chás de erva cidreira e cafunés. Ou mesmo uns bons gritos. Avó é mãe duas vezes, dizem. Avó é alguém que temos um medo bem grande de perder, mas como conforta Drummond, “As coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão.” Pois que fico enormemente feliz quando chego nos Inhamuns e Maria, minha avó, me olha com um olho cego e o outro brilhando, apesar da catarata. Em seu abraço cabe o sertão, o mar, o azul e o violeta. Não importa a minha idade, serei sempre a criança desprotegida à procura da mão da avó. E não importa a idade dela, Maria será sempre a Moura encantada, com mãos de ferro e unhas de porcelana.
Por Thalita Gabriele Moura Vieira.