Casa de calçados
Certo dia, Mariana, curiosa que só ela, resolveu aproximar-se do portão enferrujado e carcomido do quartinho escuro, e encantou-se com uma sandalinha cor de rosa que estava emborcada, solitária sem seu par, próxima ao portão. Queria eu poder descrever com exatidão a intensidade com que os olhinhos de Mariana brilharam quando viram aquela sandália, tão meiga e conservada no meio daquelas quinquilharias, uma belezura! Decidiu que teria que haver um par, e que seriam suas, as duas, fosse como fosse! Espirituosa, bateu palmas por duas vezes:
- Moço, ou moço... Tem alguém ai? – esticava o pescoço, como que procurando um velho amigo.
Parecia não ter ninguém naquele quarto abafado e amontoado de sapatos e velhas sandálias, e, se havia, parecia não ouvir – ou não querer atender – Mariana. Pensou em novamente insistir nas palmas, mas gritaram por seu nome no final da rua, e Mariana nem mais lembrava que estava em plena brincadeira de corre-corre. Despediu-se daquela sandália como quem deixa um cachorrinho abandonado no meio do mato, e havia um aperto em seu peitinho esquerdo - de tanta dó.
A noite foi mal dormida. Por vezes pensou em levantar-se e ir ao quarto da mãe, pedir a ela de presente aquelas sandalinhas, que nunca mais lhe pediria nada, mas que, por tudo que mais amasse, comprasse-lhe aquelas belezinhas rosa para exibi-las em seus pés. Na escola, na manhã seguinte, ficou quietinha no canto da sala, e mesmo todos estranhando seu comportamento, que era sempre de inquietude e elétrico, ela dizia: “não é nada, estou com uma dorzinha de barriga” – não queria nem podia dizer a ninguém sobre sua sandalinha, decerto iriam querer toma-la, comprar antes que pudesse fazer aquele negócio. Decidiu, ainda antes de sair da escola, que àquela noite falaria com o dono daquela Casa, que decerto venderia para ela baratinho se ela fizesse uma carinha triste, pois todos diziam que ela era uma coisinha fofa e lhe adulavam com mimos e regalos sempre que merecia – ou simplesmente queria algo.
Jantou cedo, faltava ainda dez pras sete da noite quando arrotou um arrotinho de menina e pediu a benção à mãe:
- Tu já vai pra onde, bicha mal educada? Eu quero é que tu não chegue aqui antes dessa novela acabar, tu escutou?
O portão da frente já havia batido duas vezes quando Dona América terminou de gritar o último verbo. Passou por entre os amigos e fez que nem os viu, tão cega que estava em um só pensamento, pois algo mais importante a esperava ali na esquina. A luz estava acesa, o que já era um bom sinal, e grande foi a surpresa que estava reservada à Mariana: no mesmo lugar, próximo ao portão, estava não somente a sandalinha rosa, emborcada e suja, que Mariana vira no dia anterior, mas agora estava juntinha a seu par, as duas corzinha de morangos. Deu dois saltinhos leves de alegria, estava realizada! Palmas, palmas:
- Moço, seu moço, o senhor tá ai? – aflita, mas àquele dia houve resposta. Um vulto vindo de um canto escuro do quarto fez de pé ante a menina.
- Diga, boneca. – era uma lenda que se transfigurava ali na sua frente.
Mariana quis travar, parecia que a voz não iria sair da garganta à fora.
- O s-senhor vende essa sandália aqui é? – nervosa.
O homem coçou a barba, era realmente como haviam dito, um tanto rabugento, não tão sujo. Aproximou-se do portão, era alto e usava uma velha bermuda esverdeada e rasgada. Olhou para todos os ângulos da rua, que parecia ainda mais mal iluminada justamente aquele dia, o que era quase proposital.
- Você mora aqui mesmo, boneca? – mastigava um chiclete – ou fazia que mastigava.
- Moro lá na outra esquina, e eu vim aqui ontem, mas o senhor não estava, né? – precisava ganhar a simpatia do moço das sandálias.
- Era, eu não tava não. – disse, destrancando o cadeado – Você quer qual sandalinha? Essa rosinha aqui? Entre, mocinha, que lá dentro tem mais – convidativo.
Mariana foi, taciturnamente, entrando no quartinho abafado. Quase chorou quando viu à sua frente como que um corredor cheinho de sandalinhas e sapatilhas de todas as cores, das mais bonitas, que parecia milimetricamente feito para o encanto das apreciadoras de calçados coloridos.
- Meu jesuizinho! Como são lindas! Quero levar todas! – exultava de alegria.
- Vai, você vai levar todas, tudinha! – o escarnecedor.
O homem, da Casa de calçados, que era realmente sujo e maltrapilho, deu uma última olhada para as ruas que lhe rodeavam e nada via, embora ainda cedo. Algumas crianças caretas brincavam de corre-corre no final da rua e, empolgadas, não se atentavam aos locais mal iluminados e desinteressantes por onde não podiam correr. Voltou a colocar o cadeado no portão velho e carcomido de ferrugem e com manchas de sangue seco em algumas das dobradiças, fechando vagarosamente a porta de enrolar atrás de si, enquanto Mariana media seu pezinho nas sandálias amareladas que fechavam com tirinhas.
- Qual seu nome, meu benzinho? Qual sandalinha você vai querer? Venha aqui que tem um bocado que você ainda não viu! – disse o homem, com a mão grossa e peluda no ombrinho da menina realizada, a conduzir-lhe com certa pressa em direção ao canto escuro e sombrio do quarto lendário dos calçados, e Mariana já percebia que não era mais tão encantador o caminho alegre das sandálias coloridas – queria voltar.
Sabe-se que naquela noite a brincadeira das crianças caretas foi até um pouco mais tarde, as mulheres não dormiram e ninguém comprou nem consertou calçados no dia seguinte, pois a Casa de Calçados não abriu: fechou por excesso de encomendas.