17 de julho de 2014

O Elevador Social

Oito horas de trabalho ordinário e quase três horas de engarrafamento depois, Pablo chegou ao prédio onde mora e chamou o elevador social.

Às vezes, o elevador estava vazio, e Pablo subia sozinho no silêncio até o 22º andar. Às vezes, tinha gente. Na maioria das vezes em que tinha gente, havia uma pessoa. Davam-se boa noite e, depois, cada um olhava pro seu canto. Pablo preferia assistir os números vermelhos dos andares mudarem no visor digital. Muitas vezes, as mulheres que entravam no elevador com ele também gostavam de olhar para o visor digital. Ele gostava da ideia de compartilhar com elas o olhar em direção ao visor. Era bom pensar que era um lance só entre ele e as mulheres.

Havia um espelho; era uma opção olhar para o espelho, mas quase sempre o outro tinha a mesma ideia de olhar para o espelho, e iam acabar olhando um para o outro pelo espelho – nem pensar. Também havia o truque de mexer no celular para não ter que olhar para canto algum nem para cara de ninguém.

Quando havia duas pessoas dentro do elevador, geralmente era um casal. Pablo achava um saco quando começavam a conversar entre si como se ele não estivesse ali, sobre coisas comezinhas do dia a dia do casal, passando pela conta de luz que o outro não pagou, a gestos de amor – enfim sós, ele, o marido e a esposa entre quatro paredes.

E quando o casal tinha uma criança, ela encarava Pablo como se nunca tivesse visto outro ser humano além dos pais; ele se sentia como um ET ou, quando a criança ria da cara dele, um palhaço, o que para Pablo era estranho e irônico, porque ele sempre achou palhaços figuras tristes.

O pior era quando ele dizia ‘boa noite’ a alguém no elevador e a pessoa passava a contar toda a sua vida –a própria definição de um chato, pensava Pablo.

Dessa vez, o elevador abriu e havia apenas uma mulher lá dentro. Era morena, aparentava ter entre 27 e 30 anos, tinha cabelos lisos que batiam nos ombros, castanhos claros e repartidos ao meio, olhos grandes e amendoados, a boca não era pequena nem grande, os lábios grossos e sem batom – estavam um pouco ressecados nos cantos. Vestia uma camisa de abotoar branca de algodão, com o primeiro botão aberto deixando aparecer o início do colo queimado de sol, e uma saia longa preta com bordados que descia um palmo abaixo dos joelhos.

A mulher disse apenas o protocolar “boa noite” e ficou junto à porta, cabeça baixa, com uma sacola branca de tecido que segurava pela alça com as duas mãos, com esmalte preto, rente ao abdome. No braço esquerdo, havia um relógio analógico de pulso azul e um ornamento com fio de embira amarrado três vezes ao redor do braço com nó bem feito.

Quando a porta do elevador se fechou, Pablo notou que ela não apertara nenhum andar. Ele achou estranho, mas ficou quieto e abaixou a cabeça olhando para os pés da moça: ela calçava sandálias rasteiras de cor preta com tiras incrustadas de tachas metálicas em volta dos pés. Na lateral do pé, havia a tatuagem de um ramo de flor que subia em formas curvilíneas um pouco acima do calcanhar até encontrar o desenho de uma borboleta na vertical, como se estivesse pairando no ar, com asas de escamas internas em azul celeste e as externas em preto intercalado com áreas sem tinta.

Suspendeu os olhos e encontrou os olhos dela o espreitando. Então, com os olhos vidrados nele, a mulher se aproximou de Pablo, soltou a sacola no chão e o esbofeteou com a palma da mão bem aberta e estatelada na face esburacada de cicatrizes de espinhas e áspera de barba mal formada crescendo. Com o impacto, os óculos de armação retrô nerd de Pablo caíram no chão. Ele ficou atônito, sem reação. Em seguida, ela agarrou os cabelos ondulados, negros e oleosos de Pablo, puxando com toda força, enquanto ele se arqueava e gritava, paralisado pelas mãos femininas manufaturando a dor. Ele, que veio ao mundo pela dor, não segurou a estranha nem pediu que ela parasse. Pensou na agonia daqueles que arderam nas chamas da inquisição, e viu que a sua dor era fichinha perto disso – outro dia mesmo, experimentou a sensação de tocar, por acidente, a ponta do dedo numa panela ardente no fogão, e com certeza não suportaria aquele contato com o calor por mais de 1 segundo.

Pensou no ritual de flagelo da crucificação dos romanos, e achou que sua aflição era nada em comparação. Na verdade, já agradecia àquela mulher por não ser queimado na fogueira nem estar pregado na cruz. Pablo apenas sentia a dor como algo que devesse experimentar, como uma revelação ou rito de passagem.

Aquilo durou uns doze andares, até que ela largou o cabelo dele e o beijou. Forçou a boca contra a dele, abrindo espaço com a língua entre os lábios de Pablo, que cedeu finalmente ao toque úmido e quente da língua da desconhecida. O gosto agridoce da boca da estranha – mais cedo, ela tinha comido chocolates e fumado cigarros – se misturou ao cheiro extenuante de hidratante corporal que exalava da pele da mulher. Sugavam a boca um do outro com pressa e perigo.

Em seguida, ela afundou o nariz no pescoço dele, respirando o ar que pairava no vão entre suas narinas e os poros do pescoço branco e úmido de Pablo, passando os braços ao redor do abdômen dele e o apertando contra o corpo dela bem forte. Ela emitia um gemido de cólera enquanto enfiava as unhas na carne de Pablo sob a blusa dele, como se quisesse arrancar suas costelas, uma resposta ou mesmo sangue. Pablo fazia um som surdo de dor e pensava naqueles que tombaram com grandeza nos campos de batalha sangrenta de Montese, na II Guerra Mundial, e no modo como eles enfrentaram a dor e a morte numa guerra que eles não provocaram. Contudo, entre a guerra e o tédio, alguns preferem à primeira. Naquele momento, a coragem e a resignação de Pablo eram a mesma.

Ele olhou os números dos andares passando: 19, 20, 21.

Enfim, o visor mostrava o número 22 – o último andar.

A porta se abriu.

Pablo olhou para baixo e viu os pés de tamanho 37 dela numa sandália rasteira preta com tiras incrustadas de tachas metálicas. Tinham o formato romano, em que o primeiro e segundo dedos têm o mesmo comprimento e, a partir do terceiro prodactilo, o tamanho dos dedos vai diminuindo progressiva e harmoniosamente. As unhas estavam pintadas com esmalte Hits preto. Pablo levantou os olhos para a mulher, que estava junto à porta do elevador de cabeça baixa, com uma sacola de tecido branca que segurava pela alça com as duas mãos rente ao abdômen. Pablo olhou para o visor digital que mostrava P em vermelho escuro. Baixou os olhos no painel de números dos andares e viu que as bordas dos botões 8 e 22 estavam fluorescentes em vermelho. A porta se fechou e subiram no silêncio. Pablo checou o celular, mesmo sem rede, com medo de encarar a estranha...

por Jeovane Cazer

 

Jeovane Cazer - Reside em Brasília, tradutor - graduado em Letras-Tradução pela Universidade de Brasília.

Gosta de literatura e de poesia pós-moderna.

Fala pouco, por isso escreve muito.

Mantém um blog com seus textos: http://www.recuo.wordpress.com