26 de junho de 2014

“sim" e “não” de Alessandra Bessa: Arcanos Maiores e a Valsa Leve

por O Poeta de Meia-Tigela  


Uma massa de gente
Se nega
Te nega
Nega a muitos
Nega o outro constantemente E o fraco diz “sim” a essa negação
E inferioriza-se em um “não”

(VIII — A Justiça)


(I) ARCANOS LEVES  


Os arcanos maiores destacam-se no conjunto das cartas do Tarô: cada um se constitui como súmula de uma vivênciaexperiência universal, cada um a condensação de um mundo mítico próprio, de alta simbologia e, como tal, inesgotável: pois sinalizaindica, não define nem explica.   

Disse-me Alessandra Bessa que não fora premeditado o encontro de seu livro com o Tarô; que somente após o aparecer dos poemas quedara claro o aceno para a correspondência entre os versos e as cartas. Melhor assim, porque mais forte a certeza de que não pretendera a autora apreender os arquétipos: estes que se revelaram (mantendo, no entanto, sempre algo do seu véu) à poeta.  Por isso seus poemas tangenciam sem que pretendam explicitar a relação com o baralho. E, no entanto, tal relação pode ser desvelada, tão logo nos ponhamos a pensar esse acordo oculto de sentidos: apresentarei apenas um exemplo, deixando a cargo do leitor a procura das pistas restantes. Tomemos o poema XIII, que começa assim: “Dormir para sempre, não se pode./ Afirmação que me tira o sono/ E dentro dessa insônia-sono/ Eu busco qualquer lugar que diga que eu possa/ Ao menos deixar de lado tudo isso”. O arcano correspondente ao número 13 no Tarô de Marselha e alguns outros (no Tarô Cigano temos O Esqueleto e a Gadanha e no egípcio A Imortalidade) — é A Morte. O tema é apenas aflorado pelos versos: digamos que chegamos a ele, mas não partimos dele. E assim no tocante aos demais. Eis, pois, o intento principal de Alessandra Bessa: antes aludir e mencionar que decodificar, dimensionar, dirimir o segredo, o mistério dos arquétipos.
  
Esse mistério perpassa, porém, todo o livro (inclusive a segunda metade, a da Valsa Leve). Cede vigor à poética de Alessandra. Cirze, compõe seus versos. Versos densos, doloridos, muitas vezes ferinos, cortantes, nascidos contudo a partir da valsante leveza de quem não se quer guardada na terra, mas grito lançado no ar.  

E o grito de Alessandra Bessa, como de todo poeta, é de “sim” e de “não”.   
  
(II) A REVOLTA  
  
“Que é um homem revoltado? Um homem que diz não. Mas, se ele recusa, não renuncia: é também um homem que diz sim, desde o seu primeiro movimento” (Albert Camus, O Homem Revoltado). A revolta é reativa. É um ato de voltar-se — não “para”; mais propriamente, “para-contra”. O revoltado volta-se para aquilo que o leva a mover-se, aquilo que o direciona, não a fim de que o encontro se dê como fusão, sim para que do encontro exploda a difusão do “não”. O revoltado vai ao encontro do objeto que repudia, vai em direção a este, razão de seu mover-se, de seu volverse; contudo, o faz em função de que que o atrator seja negado, o faz com vistas à dissolvição do que o move, o faz com o intento de destruição do motor-atrator: o revoltado quer ir em direção — não para ser absolvido por aquilo que o chama, sim para desfazer a causa do chamamento. A revolta é reação, é um contra e um ir paraem direção ao que a leva a ser o que é: “não”. 

O poeta, à medida que sua sensibilidade se vê afrontada por um estado de coisas que lhe é contrário, um estado de coisas que lhe diz “não”; o poeta revolta-se e diz “não” a esse “não”. O poeta diz “sim” a tudo que se volta para-contra esse estado de coisas: eis por que, se o que o poeta vê à volta é a negação da sensibilidade, sua reação é a de dizer “sim” a esta e “não” àquela negação. O “não” do poeta é um “sim” à poesia. Se o estado de coisas não é um estado de coisas de poesia, o estado do poeta é a revolta.  
            
A poesia de Alessandra Bessa é, em parte, esse “não”. Vemo-lo ao longo de Os Arcanos Maiores e A Valsa Leve. Um “não” que se diz enquanto recusa, enquanto fazer frente, enquanto confronto, enfrentamento: como nos poemas VIII, IX, XI, correspondentes às lâminas A Justiça, O Eremita e A Força. E ainda o poema XIV (A Temperança):  
  
Limpar é saber-se sujo limpar é saber-se pobre de tudo  
(...)  
quanto mais sujo e doloroso for o percurso tu estarás perto
da verdade já que não é o disfarce dos homens que mostra quem tu és  
  
Mas esse “não” nem sempre se mostra através do “embate”, do “instante bombástico” (Ímpeto, A Valsa Leve); também se evidencia (ou silencia) pelo voltar-se para-contra como recolhimento, sentimento de desamparo, de isolamento, despertencimento. A poeta que se revolta e diz “não”, oscila entre o duelo e a salvaguarda, entre o combate e a meia-volta-volver, o resguardo de si: “Tudo permanece tão dentro de mim/ Que não se manifesta/ Fica dando facadas/ Em meu espírito” (XX — O Juízo Final ou O Julgamento). Oscila entre a colisão e a oclusão, o ocultar-se ante o outro:   
  
Vocês não entendem  
Os meus sumiços  
(...)  
Vocês compreendem tudo errado  
Nada pode me fazer ser vista  
Inteiramente  
Ficar despida   
  
(Sumir, A Valsa Leve 
  
Talvez seja o ato de contração, de concentração, algo necessário a fim de que o “não” possa transformar-se na explicitude do “sim”; o “não” como desafio possa tornar-se o “sim” do lúdico, do bailarínico, do amoroso. Sim? Vejamos.  
  
(III) O AMOR E A POESIA  
  
A solidão do poeta não será antes, anseio ferido de solidariedade? Não será seu desejo a ultrapassagem do estar-só, a soli(t)ariedade que se quer solidária? Não saberá o poeta que sua solitude é, pelo menos, solitude de poeta e, assim, de muitos? Dos muitos que também recusam aquela recusa à sensibilidade? Dos muitos que dizem “não” ao derredor e “sim” a si mesmos? É então que Alessandra Bessa inicia o reconhe(si)mento desse si em outrem, no si de todos que se reconhecem na poeSIa.  

O amor pode resultar “em ilusão e talvez mais nada” (XII — O Enforcado), pode ser divisão e “vazio rio abaixo do poema” (VI — O Enamorado ou Os Amantes), porém pode igualmente ser esse princípio de identidade pelo qual o insulamento do poeta abrese à palavra alheia, como o faz aos versos de Mario de Sá-Carneiro ou à sentença de Blanchot (“não podemos viver em um mundo fechado”). Se o amor-a-dois é tantas vezes insatisfatório, frustrante, dorido, o amor-a-tantos do verso, do poema, subverte o “não” e afirma aquele “sim”, o “sim” do Sumo Sacerdote, do Hierofante (V):  

E diz o Hierofante  
Que a fonte é uma  
Fome de tudo  
E principalmente de  
Amor  
  
(IV) A POESIA E O AMOR  
  
O próprio arcano-poeta e sua poesia aparecem como o “sim” maior deste livro. Contra o estado de coisas avesso à sensibilidade poética, que fazer? Dizer “não” a esse avesso, virar as dobras daquilo a que o “não” diz “não”, transmutá-las no “sim” que se quer dizer, no “sim” que se quer ser. Esse “sim” é o amor enquanto amordito, é o ser poeta, é a poesia. A poesia, esse lago  
  
tão imenso que se perde 
tardes de longas datas o céu tão azul
da insensatez da embriaguez  
do nada que se faz  
  
(Lago, A Valsa Leve)  
  
Se a poesia é um sentir-se avesso ao insensível estado de coisas, o é porque não pode materializar-se, tornar-se, ela mesma, coisa. Permanecerá no reino da inefabilidade, do intangível, do inapreensível de todo: “em um lugar a mais/ além... tão além que não tem toque/ nem forma e pertencer(dor)” (novamente, Sumir).                
Emerge, assim, certa angústia do impalpável; uma aflição perante a condição intátil da poesia, a reforçar a sensação de desarraigamento, desenraizamento da própria poetisa. Que retorna, por consequência, à insulação da qual pretendera (?) sair: “A poesia se torna o que ela é/ e eu, a poeta, fico só/ sempre ficarei só nesse imenso mundo” (A Poesia, A Valsa Leve).    
          
Logo, tudo o que da poesia de Alessandra Bessa aqui foi dito, deve igualmente ser percebido, sentido, como tentativa-mera de alcançar o que a poeta afinal reconhece como incapturável. Na verdade o “não” e o “sim” de Alessandra são mais dinâmicos e deslocados, mais difíceis de apreender porque justamente espontâneos em seu surg(ir) e desapare(ser). Entremesclam-se, continuamente.  
          
O “não” da poeta, sua revolta, é um “sim” àquilo que ela mesma é, seu verso, sua poesia, reverso de um mundo-coisa, mundo-cifra; o “não” de Alessandra Zelinda é uma volta àquilo que ela, Alessandra, é: amor em sim e não, amor em sinal, signo, sinalização. Arcano Leve.  
  
*  
  
(dá-me então um pouco do teu signo e misturaremos os nossos Arcanos Maiores também)






(PEQUENA NOTA: Esse texto é o posfacio da obra Arcanos Maiores e a Valsa Leve, de Alessandra Bessa, natural de Fortaleza e professora universitária. Sobre o posfaciador, O Poeta de Meia-tigela, compõe-se a seguinte biografia: Nasceu em Fortaleza no ano de 1974. Participou da Antologia Massanova - Poesia Contemporânea Brasileira e publicou os livros Memorial Bárbara de Alencar e Concerto Nº1unico em Mim Menor para Palavra e Orquestra. Poema)