Por LiteraturaBr
18 de junho de 2014
Psia: feminino de psiu
Se você retirar da palavra Poesia somente as letras OE você encontrará o nome do segundo livro de Arnaldo Antunes: Psia. Desde seu título o livro já demonstra o jogo morfológico que atravessará boa parte das páginas dessa obra. Na orelha do livro, Arnaldo há um poema que diz: “Psia é feminino/ de psiu;/ que serve para chamar a atenção/ de alguém, ou para pedir silêncio”. Esse silêncio e atenção ganharão vigor pela página em branco, por poemas sem títulos e pela não-numeração das páginas. O fato das páginas não estarem numeradas permite a leitura não-linear, o leitor pode escolher de forma aleatória por onde deve começar sua leitura. Psia é um mundo-livro construído por palavras e silêncios. A palavra, como Arnaldo afirma em entrevistas, é sempre o ponto de partida para seus livros. Comentando sobre Psia Alessandra Santos (2013 p. 98) diz:
Psia ecoa o título do seu primeiro livro de poemas visuais OU E (1983), já que o último poema do livro está conectado a um dos primeiros (onde uma passagem bíblica citando nomes é posta lado a lado com os nomes de uma lista telefônica), mas também há um rompimento da palavra inventada “psia”, em relação à qual o “ou” e o “e” se encontram fisicamente impressos entre “p” e “sia”.
Psia pelo título e pela construção de seus poemas faz alusão direta ao livro-irmão OU E, primeiro livro publicado por Arnaldo Antunes. Esse livro não é concretista nem vanguardista, as significações para Arnaldo são supérfluas, para ele a sua obra é inclassificável. E é dessa forma que ele prefere ser reconhecido, como um poeta sem classificações.
O poema que abre o livro lembra os provérbios ditos por minha avó: “Quem com ferro fere com ferro será ferido”. Porém Arnaldo desestabiliza a expectativa do leitor ao trocar o vocábulo ferro sem alterar a conotação social do dito popular. Eis o poema-frase que abre o livro:
Quem com ouro fere?
O poema acima surgiu do provérbio que citei, Arnaldo aproveita um ditado popular de tom afirmativo e o reconstrói em tom interrogativo sem retirar a essência social do dito popular. A pergunta é posta em uma página cercada pelo branco, em que só se lê o poema-provérbio, esse espaço branco compreende o silêncio para que cada um se questione acerca do questionamento. Ribeiro Modro (1996 P. 43), sobre o poema, comenta que:
Ao realizarmos a comparação entre o poema e o provérbio podemos perceber que há uma perda da aliteração, recurso literário que "consiste na repetição do mesmo som ou sílaba em duas palavras ou mais, dentro do mesmo verso ou estrofe", encontrada no provérbio: "...ferro fere...ferro será ferido". A perda desta aliteração põe em evidência o vocábulo "ouro", que destaca-se no texto, isto evidencia o contraste entre ferro/ouro no sentido de valo ração: os dois são metais, porém, apesar de o ferro ser utilizado e encontrado em objetos comuns no uso do dia-a-dia, é o ouro que é considerado como um metal nobre devido sua raridade e não-oxidação, e põe em dúvida o fato de se quem fere com "ouro", algo valioso, será ferido de forma idêntica.
O mesmo autor comenta à frente que esse poema lembra ainda os poemas-minutos de Oswald em que consistia abordar temas cotidianos. O próximo poema a ser analisado é divido em três partes, nesse poema percebe-se o jogo Palavra-imagem, que é uma constante na obra de Antunes e dos poetas concretos. Note:
Nesse poema visual, a letra A em destaque na palavra lua, toma a forma de uma lua cheia, o M em destaque na palavra nuvem, toma a forma de uma nuvem, principalmente devido as suas bordas. Esse poema faz uma analogia a uma noite de lua cheia cercada por nuvens. O poema seguinte complementa a idéia da noite enluarada:
a lua suja
de nuvens
surja nua
de nuvens um
dia.
O seguimento concretista segue nesse poema, pois a palavra lua puxa a palavra nua e a palavra suja puxa a palavra surja, esse é o famoso jogo palavra-puxa-palavra que os concretistas teorizavam. MODRO (1996, p. 46) comenta sobre o poema:
A idéia enfocada iconicamente no primeiro segmento é retomada aqui ao afirmar "a lua suja de nuvens", como se as nuvens fossem uma espécie de poluição para a lua. Na parte final, esta poluição de "nuvens" é retomada como se fossem vestimentas, as quais a "lua" poderia dispensar para surgir "nua" em todo seu esplendor. Note-se ainda que o verso final é constituído por apenas um vocábulo, "dia", que por ser um substantivo e ter seu respectivo artigo indefinido, "um", no final do verso anterior, se constitui num nítido enjambement, isto é "o transbordamento sintático de um verso em outro; a pausa final do verso atenua-se, a voz sustém-se, e a última palavra de uma linha se conecta com a primeira da seguinte, estabelecendo a ruptura da cadência determinada pela simetria dos segmentos ou gerando a desuniformidade rítmica da estrofe"7. Além disso, há, aqui, um tom de coloquialidade ao aproveitar uma expressão idiomática,. "te vejo um dia destes", com o sentido de qualquer hora (dia ou noite) para indicar a possibilidade aleatória do surgimento da lua desnuda de nuvens.
No último poema dessa série sobre lua e nuvem, há uma continuação de jogo de palavras, dando ao poema ares de musicalidade:
da nuvem nua
a lua
se desnuda
de que nuvem
a nuvem
se desnua?
Mais à frente encontraremos outro poema que seguirá essa brincadeira com as palavras, mais um poema em que notaremos a influência da poesia concreta na obra de Arnaldo Antunes:
O sol acende
Ou só ascende
Arnaldo nesse poema, e em outros, aproveita bastante da página em branco, construindo de maneira fora dos padrões clássicos poéticos. Nesse poema Arnaldo liga as palavras de maneira fonética e morfológica com “o/ou”, “sol/só” e “acende/ascende”, essas palavras de maneira fônica acabam fornecendo conexões entre si, sem falar do belo morfológico com “acender” e ascender”, gerando na primeira a idéia lúdica do sol iluminar enquanto que “acender” liga-nos a idéia do sol subir.
O jogo morfológico continua no poema A rosa se rosa// a rosa rosa// arroz, nesse último poema Arnaldo aproxima-se do Haicai, arte poética japonesa de consistência filosófica e simples, o verso inicial A rosa se rosa provoca um questionamento sobre o vocábulo rosa, questionando-a como cor e flor rosa, no segundo verso o poeta retira o vocábulo se afirmando nesse verso os dois seguimentos: cor e flor. O último verso Arroz reproduz uma aproximação fônica com as palavras rosa, como também forma um anagrama fônico da palavra Rosa. Ribeiro Modro (1996 p. 51) comenta sobre uma intertextualidade entre o poema A rosa de Hiroshima de Vinicius de moras com o poema A rosa de Arnaldo Antunes:
Uma primeira analogia entre os dois poemas é o tema central: a rosa; ressaltando que Vinícius foi o primeiro a estabelecer uma relação entre a rosa e o cogumelo atômico formado após a explosão de uma bomba atômica. Além disso, se realizarmos uma comparação entre os dois poemas podemos perceber que o verso inicial do poema de Antunes, "A rosa se rosa" possui o mesmo início ("A rosa") e um final ("se rosa") que remete fonicamente ao final do verso "A rosa com cirrose" de Vinícius. A partir deste verso Antunes realiza um trabalho de supressão e aproximação fônica, conforme visto acima, e chega ao verso final "Arroz". Chegamos, assim a dois elementos que sintetizam o poema de Vinícius: a rosa (cogumelo atômico) e o arroz (a principal fonte de alimentação dos japoneses).
Ao folhearmos mais para trás, encontraremos um poema ricamente social. A idéia em si do poema é transmitir a idéia de que o olhar de uma mãe sempre é diferente do olhar de um pai, a mãe filma cada momento do filho, faça este teste leitor, pergunte a sua mãe qualquer fato de sua vida e ela lhe responderá com ricos detalhes. Eis o poema que falo:
o
olho
(fêmea)
olha
o
(
filho
)
filme.
A parte corporal olho se materializa na letra O, as pálpebras se concretizam nos parênteses, por isso há o momento de abrir e fechar de parênteses na palavra filho. Alessandra Santos (2013 p.99) sobre o poema teoriza:
No poema o/olho/(fêmea)/olha, há um colapso no processo de flexão, no sentido de que “o olho” masculino e sua mudança de gênero (impossível), torna-se “possível” na leitura onde a conjugação do verbo “olhar”, vira fêmea de “olho”: a “olha”. Dentro dessa característica, o poeta explora a morfologia dos vocábulos, desafiando suas limitações estruturais, modificando normas, criando assim novas possibilidades lúdicas de leitura.
Essa brincadeira morfológica e sintáxica repercute em toda a obra de Arnaldo Antunes. Não se trata de exclusividade apenas desse livro. O poema abaixo remete ao questionamento do ser:
quem?
mim-
guém
Esses três versos são postos no centro da página, cercado pelo branco. Arnaldo nesse poema trabalha com a fragmentação vocabular, esse recurso será uma de suas marcas literárias. Nessa fragmentação Arnaldo propositalmente fragmenta a palavra ninguém trocando por mimguém, ao construir esse neologismo o poeta evoca o esvaziamento do ser, evocando um ser primitivo, antropófago. O lirismo de Arnaldo é presente em Psia em dois poemas. Gostaria de destacar apenas um:
porque eu te olhava e você era o meu cinema, a minha Scarlat O’Hara, a minha Excalibur, a minha Salambô, a minha Nastassia Filípovna, a minha Brigite Bardot, o meu Tadzio, a minha Anne, a minha Lou Salomé, a minha Lorraine, a minha Ceci, a minha Odete Gracy, a minha Capitu, a minha Cabocla, a minha Pagu, a minha Barbarella, a minha Honey Moon, o meu amuleto de Ogum, a minha Honey Baby, a minha Rosemary, a minha Merlin Monroe, o meu Rodolfo Valentino, a minha Emanuelle, o meu Bambi, a minha Lília Brick, a minha Poliana, a minha Gilda, a minha Julieta, e eu dizia a você do meu amor e você ria, suspirava e ria.
O ponto alto desse poema são as intercalações que Antunes faz com a musa. Ele compara o seu amor a figuras mitológicas da literatura e do cinema, nesse poema há também a fusão de linguagens e de imagens. Alias o recurso imagético é bastante utilizado na poética arnaldiana. Arnaldo Antunes em Psia compreende a poética contemporânea sem esquecer as raízes da poesia que são o lirismo, o sentimentalismo, a visão social e a contemplação do mundo. Psia é um livro que para alguns soará estranho, devido as suas inovações poéticas, mas a sua base está nas grandes estruturas poéticas. Nesse livro, o segundo de Arnaldo, notamos um poeta ainda em busca de uma linguagem própria, mas muito da produção vindoura do poeta é percebido nesse livro, portanto eis uma peça fundamental para entender mais a sua produção, lendo Psia.
REFERÊNCIAS
ANTUNES, Arnaldo. Psia. São Paulo: Iluminuras, 2012.
MODRO, Nielson Ribeiro. A obra poética de Arnaldo Antunes. 1996. 166 ff. Dissertação (Mestrado em Letras) – curso de Letras, Universidade Federal do Paraná: Curitiba, 1996.
SANTOS, Alessandra. Arnaldo Canibal Antunes. São Paulo: nVersos, 2013.