To Selfie or Not to Selfie
Segunda feira, 06:07h
Acordou querendo mudar o mundo. Original. Necessário.
Apenas uma manhã de um dia qualquer e cá estava ele, deitado, com uma epifania em sua mente. Não se deixou enganar pelos primeiros raios de sol: eram dias sombrios.
Lembrou que, quando era criança, tinha um grande prazer em pensar no infinito. O céu sempre foi o único limite. Sonhava noites intermináveis em estar com você, Holden, no campo de centeio. Sonho adiado. Parava para afagar todos os cachorros que encontrava na rua e sonhava em levar todos para casa. Sonho perdido. Todo natal se perguntava “Papai Noel: você existe?” Pô, isso era importante! Mas foi-se. Hoje, tudo isto não passava de um elixir mágico.
E foi assim toda a vida: o menino que queria ser astronauta, músico, pintor ou inventor, mas foi condicionado para querer ser chefe. O adolescente que pensou em estudar filosofia, mas teve que priorizar a eficiência capitalista. O adulto que já foi freudiano e yungiano, religioso e ateísta, de direita e de esquerda, a favor e contra. Mas hoje, preferia não discutir mais nada.
E assim, atualmente, nada mais era do que um homem que não tinha nada a ver com o mundo.
Então por que isto agora? O que esta manhã tinha de diferente? Nada. Eis a questão. A janela de seu quarto continuava a mostrar o mesmo mundo de fora, visto pelo mesmo homem de dentro. Será que tantos anos omissos finalmente se mostraram como uma perturbação latente? Alguém ouve o que ele ouve, alguém sente o que ele sente?
Analisando, ele chegou à conclusão que o comodismo é a peste do século XXI. Arriscar-se para alargar horizontes? Meu caro, mais vale ser parvo do que morto. Pergunte a qualquer um. Colombo foi um louco descompensado de atravessar aquele oceano procurando alguma coisa.
Hoje, em todo lugar do mundo há medo, desconfiança, desilusão. Dinheiro sujo, consciência suja, discursos que secretam. Espécies se tornam extintas mais agilmente do que qualquer corrupto, que se declara socialista, é sentenciado. Deus morreu, mas tem um oráculo oportunista em cada esquina. A direita ganha, a esquerda renasce das cinzas e tudo recomeça do zero nesta tela total. As pessoas não sabem mais de si. Ninguém admira mais o progresso dos outros, ninguém quer ajudar, ninguém quer melhorar. Esperam ansiosamente (porém dentro de uma pacifica acomodação), por um mundo melhor. Rotulam o sistema como mau, mas não como inimigo. E, no fim do jogo, preferem adiar toda a partida. Adorabilíssimo este mundo novo.
Todas ações acontecem pelo medo, não pela busca de uma plenitude. Alguém se aproximou no trabalho? Ou é pra te imitar ou boicotar. Desafio é alguém achar algum outro adjetivo que venha à mente primeiro. Morra quando quiser, mas, por favor, só não no meio da maratona usando o uniforme do patrocinador: não pega bem. Não divulgue novas oportunidades, não abra os vidros do carro e use todo tipo de sorte que tiver disponível para brincar de sobreviver. Atenção, o manual de hoje da sobrevivência alega: não peça paz, peça armas; não reze para ter esperança, reze para ter forças. Amargo é o posto de fim do mundo.
O “um por todos e todos por um” é quase uma utopia, um unicórnio ou uma imagem fóssil de um passado longínquo. Agora o “salve-se quem puder” reina como uma constante música de fundo, alta e em bom tom. Síndrome da toda alma moderna. Tem tanta coisa desandando que nem sabemos o nome que dar. “Capitalistas: senhores por mérito, escravos por necessidade”. Não. Qual é o oposto do milagre? Este seria um bom nome.
Pensou nas inúmeras revoluções perseguidas, exílio de gênios, queima de livros e tortura dos que se sacrificaram por um mundo melhor, para acabar assim. Oh, amigos, o desculpem: que ele, cômodo, sobreviveu e vocês já foram. Há uma culpa invisível e presente: são estes fantasmas na janela e suas sombras no chão.
Mas agora ele não conseguia mais imaginar aonde encaixar tais coisas num amanhã bem escrito. Os erros terão que ser acertados. É tempo de urgência, é tempo de insurgência.
06:25h
Então estava decidido: iria mudar o mundo. Simplesmente. Finalmente.
Seria o idealista, o rebelde, o aventureiro, o altruísta e o incansável. Tomaria o controle de si mesmo. Pararia de apertar o botão da soneca toda vez que o despertador mostrasse que está na hora de agir. Agradeceu por ter sido uma criança solitária que só tinha como amigos os livros. Estes sim formavam um excelente pelotão de enfrentamento. Eureca!
Uma imensa animação e plenitude o atingiram. Um belo começo: uma ideia se tornou um jeito. Decidiu começar escrevendo a verdade. A verdade! Há! Aquelas corriqueiras verdades sobre as quais pouco se sabe e menos se faz. Afinal, não foram os próprios humanos que criaram esta realidade? Criaram, consentiram e até planejaram. Ui. Estudaria, então, todas as revoluções, o mecanismo do sistema e reprogramação neuro linguística. Iria sugerir uma revolução além do capitalismo e além dos aspectos destrutivos da modernidade. Seria um texto revolucionário. Ele, que hoje ninguém sabia o que se passava naquele quarto ou em sua mente, mudaria o mundo.
Pensou em escrever com um pseudônimo para não ser encontrado, mas achou meio covarde logo em seguida. Seria isto covardia ou orgulho de querer os louros caso desse certo? Ficou confuso. Pensou melhor e resolveu começar pela ocupação das ruas, afinal não é só isso que chama atenção? Talvez, tivesse que começar esta revolução fora de casa e no meio das ruas. Mas... nas ruas? Publicamente? E, se fosse pego, torturado, exilado? Talvez seja melhor começar uma revolução discreta enquanto finge-se um caráter miserável, aceitando os preconceitos e costumes dominantes, disfarçando qualquer coisa que denote que esta independência de espírito possa ser interpretada como uma provocação. Realmente, por mais triste que seja, ser tomado por louco traz menos problemas. Difícil a mecânica da revolução moderna, hein?
Sua cabeça doía. Anos estudando e sonhando aparentemente sem utilidade, agora vinham à tona como um maremoto. Parou e pensou.
06: 43h
Um medo tomou conta. Será?
O primeiro que levanta a cabeça na multidão é sempre aquele que toma a primeira pedrada, não é? Que coragem.
Repensou. Não conseguia achar outro final para sua empreitada: seria, como tantos outros foram, perseguido, exilado, torturado ou veria sua morte antecipada selada de segredo. Não. Temeu pela própria vida. Estava exagerando talvez? Afinal, não dá pra ser tão altruísta, tão elevado, são seres humanos que habitam a terra, não mestres ascencionados.
Será que este idealista aventureiro que ele criou não é nada mais do que um egocêntrico, insatisfeito e maníaco? Há de se convir, querer ser o despertador da atual letargia é meio louco. Sem falar suicida. Quis ter seus livros por perto...
Não. Ele não podia fazer tudo. Deixaria algo para deus. Não que ele tivesse medo da morte, mas não tinha pressa em morrer também. Afinal, por mais que ele quisesse lançar novas leis, não seria julgado pelas que já existem? Tem como alguém transcender e continuar sendo membro dele?
Já estamos tão acostumados com o osso, por que é que ele queria pegar a carne agora? Ser o portador das notícias ruins? A verdade (e que atormenta a todos, até as mentes mais dotadas) é que morrer por um ideal é fácil, difícil é viver por um ideal.
Então, brinquemos de poltergeist. Coloquemos-nos na posição de fantoche. Aceitemos esta geração perdida de pessoas falsas. Cresçamos mortos. Sim. São as injustiças da vida. Não foi isto que te ensinaram? A mascara está perfeitamente de acordo com o que se deseja ocultar.
E assim tudo continuaria igual. Ao final do dia só seria mais um dia. Sobreviveria, como até agora sobreviveu, junto com esta humanidade numa casca de nós.
07: 14h
Não! Não poderia ele arranjar uma desculpa. Outra desculpa. Outra vez. Até a noite mais sombria tem que descansar e o sol há de nascer.
Cá estava ele: barganhando por minutos de vida desperdiçados, lutando para ser feliz, mais um pouco que seja. Queria parar de só assistir, só reclamar, só curtir o Greenpeace no facebook, só chegar no supermercado e chorar de felicidade que o preço abaixou. Manipuladores de todos os tipos reinam imponentemente nesta sociedade vitimal, onde um nada mais faz do que suportar o outro, mas nós somos os verdadeiros guardiões deste mundo. Não é possível que estejamos condicionados ao comodismo.
É melhor tentar, ainda que em vão. Ou combatendo o sistema ou criando um novo. A única coisa errada é não fazer nada. Irá sim, mudar o mundo. Irá enfrentar o medo, levantar e agir mesmo que isto significasse desfazer vínculos, vender bens e se despedir.
07:30 h
O despertador tocou e o tirou desta epifania. Lembrou que era só um cara em seu quarto, num dia qualquer. E agora?
Será que tudo isto não se passava de uma indisposição ou seria este o sublime e lento começo das ações? Maldita hora da noite, quando nossos sonhos vêm. Não tinha decidido como fazer. Também não tinha perdido o medo de fazer. Parou. Ficou. É, não. Talvez, não cabia a ele, um rele homem, julgar. É necessário liquidar o silencio do mundo? Não sabia mais.
Suspirou e sacudiu a cabeça. Finalmente se levantou. Afinal, já eram 7:30, e tinha que ir para o trabalho que não gostava, mas pagava as contas. E, como bem disse Oxford, a palavra do ano é “selfie” e não “sharie”.
07:31h (e todas as horas adiante)
E, talvez, o fim da humanidade seja diferente do que muitos esperam. Talvez a humanidade acabe assim, como um suspiro e não como um estrondo.
Infelizmente, mas simplesmente.
por Julia Antuerpem
Julia Antuerpem é roteirista e escritora pós graduada com especialização em Escrita Criativa por Harvard University. É ganhadora do Melhor Roteiro de Ficção pelo Green Nation Fest 2012 (em parceria com a Rede Globo), Melhor Crônica IV Prêmio Martha Medeiros 2013, e Prêmio Estímulo de Curta Metragem 2011 com projeto suplente.