Chamada a cobrar
De repente, ele se viu atarantado com a quantia de papéis que lhe caíam por cima, ao abrir a caixa de correspondência. Envelopes, folhetos publicitários, cartões de profissionais, ofertas de serviços: encanador, marcenaria, massagens, tarô, búzios. E um pacote grande, com etiqueta, destinatário, nome completo. Sentiu o volume, material sólido. Encheu os bolsos com o papelório miúdo. Na ânsia de chegar logo, desferia manotaços no botão de comando do elevador. A máquina despencou no térreo. Puxou a grade de ferro, depois a de madeira. Lá dentro, o olhar percorreu o conjunto de teclas à procura do número dez. Sozinho no cubículo escuro, gravata frouxa, recostado à parede, respiração longa, suspiro. Décimo piso. Apartamento defronte do seu, a porta aberta, a moradora telefonava. “Como fala essa aí. E não consegue ficar dentro de casa, vem berrar aqui fora pra todo mundo ouvir. Todo dia é sempre igual”. Cumprimento convencional. Ela fez um aceno. Ele introduziu a chave na fechadura. Enfim, o aconchego do lar. Esvaziou os bolsos em cima da mesa e enveredou para o quarto.
Já de volta, sem camisa. Bermuda, chinelo. Abriu a janela. Um jato de vento espalhou pelo chão a papelada do correio. Pôs-se a juntar. Mas a remessa maior continuava imóvel. Objeto pesado. O que seria? Com os dedos trêmulos, mãos atrapalhadas, rasgou a boca do invólucro, sacudiu o embrulho pelo fundo, trouxe à luz o conteúdo. Um telefone celular. Em seguida, o apito da campainha invadiu o recinto doméstico. Prendeu o utensílio com a mão, em exame minucioso. Superfície lisa, sem nenhuma abertura para pilhas ou ligação em rede elétrica. Apenas o conjunto de teclas com os dez algarismos e botão talk. Atendeu. “Alô”, uma voz monótona advertiu. “Senhor Dorivaldo, o senhor foi contemplado com este telefone celular, por favor, para confirmar o recebimento, permaneça na linha por cinco segundos”. Perquiriu o aparelho com intenção de desligar, não havia dispositivo para isso. Precisava dizer que não queria, não tinha pedido nada. Reaproximou o fone do ouvido, ia cancelar. “Pronto, sua linha já está habilitada. Parabéns. Agora fica mais fácil contatar seus clientes, amigos e familiares em tempo integral”. Ele respondeu, exasperado, “mas eu não tenho clientes, não tenho amigos, nem família. Eu não quero essa porcaria”. Livrou-se com um safanão daquele presente indesejado, que foi picar em rodopios na madeira da mesa. Entrementes, o som de chamada transformou-se em gemido lamuriento. Atordoado, cambaleou para trás. Um espetáculo grotesco se desenrolava ao alcance de seus olhos. A coisa crescia enquanto girava, até que caiu de vez e parou de tocar. Fez-se o silêncio. Mas o descanso não veio. Em instantes, o ressoar enervante de nova ligação empestou o ambiente. Aperreado pela insistência, atendeu. “Alô”. Voz falsa, igual à anterior: “senhor Dorivaldo, esta é uma ligação automática da Operadora de Cartões de Crédito Compre Mais, para confirmar que seu cartão foi aprovado. Parabéns, o senhor foi contemplado com a nossa promoção primeira anuidade grátis”. Assim já era demais. Repeliu de si aquela inutilidade, que se revolveu sobre o tapete. Ele pulou em cima, e passou a pisoteá-lo, aos gritos, “mas que inferno, eu não pedi cartão de crédito, eu não preciso de cartão de crédito, eu não quero cartão de crédito”. Ao mesmo tempo em que espezinhava aquela descortesia maldita, descarregava toda irritação através de imprecações verbais. Por fim, aplacada a fúria, extenuado, desabou sobre a cadeira. Mas o cansaço deu lugar ao pânico, quando percebeu que aquela anomalia já tinha as medidas de um tijolo. Arrancou em disparada na direção da saída. Mas conteve-se, ao ouvir batida na porta. Espiou pelo olho mágico e reconheceu a matraqueira do andar. Abriu.
- Oi. Desculpa, eu ouvi gritos e correrias na sua casa. Sem querer me intrometer, mas eu vim ver se está tudo bem.
A curiosa do condomínio não falhava. Situação bizarra. Sem camisa, gotas de suor escorriam pela face, todo escabelado. Ele não sabia o que responder, ela continuava ali parada, o olhar se insinuando para dentro do apartamento. No esforço do autocontrole ele preferiu esclarecer:
- Algo estranho aconteceu: um celular toca sem parar. E chora. Parece vivo.
- Vivo?
- Claro. Um ser vivo. E eu não sei de quem é.
E com palavras desconexas se embaralhou:
- A senhora? O que aconteceu? Não sabe?
Ela retrocedeu o passo. A entrada do próprio apartamento continuava aberta. Antes de sair em retirada, ela ainda insistiu.
- Se está tocando, deve ser seu.
- Mas eu não tenho celular
- Então deve ser da sua esposa.
- Eu não tenho esposa. Eu moro sozinho.
A fuxiqueira franziu a testa, contraiu os lábios. O homem decidiu-se a explicar a situação:
- Um telefone apareceu na minha caixa de correspondência, mas não é meu. Acho que alguém se enganou.
- O senhor não tem mulher?
- Não.
- Nem celular?
- Também não.
A fofoqueira mal se controlava mais. O olhar intrometido ora esquadrinhava a figura excêntrica do vizinho, ora furungava a intimidade dele. Ao perceber a indelicadeza, ele se plantou diante dela, um obstáculo à visão. Ela, ofendida, proferiu:
- Desculpe, mas o senhor é meio esquisito.
Transpôs o corredor num único tranco, e se encerrou em casa. Ele ouviu o barulho das chaves e da correntinha de segurança. Ela se travava toda por dentro. Novo ímpeto de cólera, esbravejou contra a parede surda:
- E também não tenho cartão de crédito. Ouviu?
Sem encontrar ajuda, voltou para casa, desanimado. Ali na sala, ouviu grunhidos, risos de deboche. Mirou o monstrinho caído no chão, praguejou, o dedo indicador apontado: “Miserável, desgraçado, tu não vais me destruir”. Empastelou o excomungado na pilha de jornais velhos no canto da sala, mas um arrepio percorreu-lhe o corpo. O zunido infernal agora parecia soluço. O traste se distendia e contraía, em movimentos de respiração. Em estado de choque, correu até o quarto, sem saber direito o que procurava. Não tinha mais paciência com aquela aberração. Precisava se livrar dela. Sacou o lençol da cama e, com o rosto retesado pela angústia, voltou para a sala. Susto, salto involuntário, terror, tentativa de fuga, não havia escapatória. O crápula não parava de aumentar, e subira sozinho no sofá. Uma atitude drástica, definitiva, devia ser tomada, sem demora. Atirou-se em cima do monstrengo, cobriu-o com o tecido. Desta vez, embora não apertasse o botão talk,ele ouviu a mesma voz assustadora das outras vezes: “Senhor Dorivaldo, esta é uma ligação automática das lojas Compre Melhor...” Não tinha mais nervos para ouvir o resto. Deu várias voltas com a coberta no bandido, acomodou-o nos braços, ganhou a saída, chamou o elevador. “Tomara que ninguém me veja”, falava baixinho para si mesmo. Sôfrego, comprimia o botão do elevador como se digitasse uma mensagem urgente. A máquina surgiu, ele entrou. Não percebeu que seus movimentos eram observados. Desceu até o térreo sozinho, espiou, ninguém. Precipitou-se em direção ao portão. Abriu, vigiou a rua. Tudo calmo e sem movimento. Caminhada rápida até a lixeira na calçada, despejou a carga lá dentro. Deu meia volta, ia safar-se depressa dali, mas nesse momento o sinal de alerta transformou-se outra vez em choro de criança. Choradeira convulsiva, um berreiro esganiçado, atordoante. As pernas já a cambalear, os olhos a se desfazer em pranto incontrolável, foi investigar, viu algo horrendo. O desnaturado não tinha mais a forma original, e sim de um ser humano recém nascido. Arrasado pelo desespero, o pobre homem era um animal acuado, estrebuchando em volta do depósito de lixo. Apanhou um pedaço de madeira jogado no calçamento, precipitou-se sobre a lixeira e se atracou aos golpes contra o bebê-celular, que chorava cada vez mais alto. “Morre desgraçado, me deixa em paz”. Uma pancada, uma maldição. Precisava aniquilar o inimigo tanto na dimensão física quanto moral. Imprecações irromperam das janelas da circunvizinhança. Insultos raivosos fulminavam o celerado lá em baixo: “assassino”, “herege”, “covarde”. A intrusa obstinada acudiu, aos gritos: ”Chamem uma ambulância, ele é louco”. Ele interrompeu o espancamento, só então se deu conta do que acontecia. Os moradores dos edifícios próximos à cena irromperam nas janelas, lançando impropérios e xingamentos. Um público ávido por dar seu veredicto contra o lutador rebaixado na derrota. Tomou nos braços o celular, então na forma original, mas ainda em dimensões desproporcionais. Despiu-o dos panos, expôs ao público que o excomungava: “Vejam, é apenas um celular tocando, apareceu lá em casa, eu nem sei de quem é, mas não é meu, e não pára de tocar”. Os protestos calaram. A arena observava em silêncio. Aos poucos, a plateia perdeu o interesse no episódio, as janelas se fecharam, e ele retornou para casa. Carregava nos braços o mesmo peso, seguido de longe pela bisbilhoteira, sempre vigilante. De volta ao seu apartamento, recolocou o indigitado no sofá e sentou numa cadeira em frente, sem atinar que deixara a entrada aberta. De súbito, aquela deformidade começou a emitir vozes em vez da zoada tradicional. A forma humana reaparecia agora da estatura de uma criança. Tombou para o chão, pôs-se de pé, direcionou os passos para o seu algoz. Emitia sons incompreensíveis, mas que deixavam bem claro o caráter de reprovação e ameaça. O homem não tinha mais dúvida, transformara-se em vítima de um ataque. Disparou pelo apartamento, o animalzinho eletrônico ao seu encalço. Trepou no sofá, galgou uma cadeira, abrigou-se em cima da mesa abaixo da janela. O perseguidor jogou-se de encontro ao móvel, ele se desequilibrou, balançou e caiu. A vizinha entrou nesse momento, ainda ouviu os apelos por socorro que vinham do lado de fora. Correu até a janela, olhou para fora e viu, lá em baixo, o corpo estendido no chão. No sofá, um celular tocava. Ela atendeu. “Alô. Não tem ninguém aqui com esse nome”. Colocou o telefone no bolso, saiu e puxou a porta.
por Ademir Furtado