Poemas inéditos de Charles Marlon
1968. Esquadros de
memórias emprestadas;
fotografias em preto e
pouco branco. A lágrima
que me cai, me sai sem minha
ser - sequer. Há cor demais nas
rugas de Caetano e as palmas
no auditório pedem – ainda-
uma última canção. Em
que gaveta ainda bate –
se tanto – ou por qual
janela saiu (pra se perder)
nosso baço coração?
“Lá onde o mundo real se converte em simples imagens”[ii]
Para o Vitor.
Lembras-te ainda de como era,
mas foi se perdendo - o sorriso-
como o medo, pelas páginas.
As ruas não te pertencem,
o quarto que alugastes por meio
salário não é o de tua infância e
já não o foi também de outros, os
que viram os pombos pela janela
como tu agora vês, ainda que mal.
Dormes mal a noite inteira – mas a-
prendestes que a tarde não é afeita
a colchões. Esperas que o alarme
do carro na esquina cesse, que
o senhorio não toque no aluguel, que
não toque o telefone; que toque o telefone
e que no fim de outra semana,
sob a suspeita de um cansaço
que geme como uma geladeira
vazia, ainda haja tempo para
outro engano, e que mais uma
vez – quem sabe - talvez-
valha a pena viver.
“Nobody Home”[iii]
Sossega-te sobre
a cera vermelha do piso
gasto. Escuta as passadas
de um tempo ausente;
da chinela arrastada
saíram estes arranhões.
Quando levantares,
sobre a mesa, te esperam
as contas do mês e a conta dos
dias.
Quando julho penetra,
impregnando a cortina,
é pela falta de outra certeza
que nossas vidas seguem
costuradas com os re-
talhos de tudo o que
não deu certo.
“Vence na vida quem diz sim”[iv]
Aprende
nos livros e na vida a ser
um tanto menos sincero
e vai às ruas
sorrir aos outros
que passam
para fingir uma
fuga da dor –
que aprendeu a
adorar quanto
mais roda,
sendo
sempre
e nunca a mesma –
que dura e que parece
saber ser o estômago
uma forma mais bruta
de coração. Mas
retorna, ao fim
do dia,
a casa há – ainda –
de lhe acolher
uma outra vez
e amanhã, quando
ligarem, cedo, às
cinco, há de dizer
- como bem sabe –
que
sim.
Ad Hoc
“(as yet, always as yet,
hopelessly as yet)”
Zygmunt Bauman
Sei que me repito,
mas foi o calendário
que me ensinou a ment
ir. Domingo estaciona; e
o sombrio senhor do re-
trato familiar, do tanto que
retirou-se de seu próprio
continente, já não chega
- sequer- a ser saudade
e – no entanto- resta-lhe
-ainda- o bigode a con-
ferir alguma espessura e
a vedar-lhe as palavras. Sob
a desculpa do mau tempo é
escusado levantar-se e ficamos
-ambos- na cama, onde o amor é ana-
crônico
e – ainda assim-
se repete.
Charles Marlon Porfirio de Sousa é poeta e mestrando em Literatura Portuguesa – poesia contemporânea - pela Universidade de São Paulo- USP. Em julho de 2012, publicou seu livro de estreia, Poesia Ltda., pela editora Patuá.
[i]Título retirado do romance O Coração das Trevas de Joseph Conrad. Tradução: Celso M. Paciornik. São Paulo: Abril, 2010. Pg. 12
[ii] Título retirado da obra A sociedade do espetáculo de Guy Debord. Tradução: Francisco Alves e Afonso Monteiro. Lisboa: Edições Antipáticas, 2005. Pg.13
[iii] Título retirado de música de Roger Waters do álbum The Wall. (1979)
[iv] Título retirado da música de Chico Buarque e Ruy Guerra para a peça Calabar, o elogio da traição. (19