6 de março de 2014

Ninguém escreve ao coronel ou a velha história das promessas por cumprir e dos galos a comer


Acampado em torno da gigantesca mafumeira de Neerlândia, um batalhão revolucionário, composto em grande parte de adolescentes fugidos da escola, esperou durante três meses. Depois regressaram às suas casas pelos próprios meios e aí continuaram à espera. Quase sessenta anos depois, ainda o coronel esperava.

O coronel de Gabriel García Márquez ficou anos e anos à espera de uma carta que lhe traria notícias de uma pensão que nunca chegou, promessa de um governo que, entretanto, caiu. Mas o coronel esperava …

Enquanto isso, ia alimentando um galo, herança do filho falecido, que lhe haveria de render bom dinheiro em lutas. Mas o galo só comia. E o coronel alimentava …

Com uma promessa por cumprir e um galo que só comia, Ninguém Escreve ao Coronel percorre os dias de um coronel que «durante cinquenta e seis anos […] não fizera outra coisa, senão esperar.». A pensão fora prometida pela sua participação na «revolução», ao lado do mais tarde figura central, em Cem Anos de Solidão, Aureliano Buendía.

– Com quem falas – perguntou a mulher.
– Com o inglês disfarçado de tigre que apareceu no acampamento do coronel Aureliano Buendía – respondeu o coronel.

A narrativa começa em outubro, «uma das poucas coisas que chegavam», com o coronel a sentir que lhe nasciam «fungos e lírios venenosos nas tripas». E começa sem que fique dúvida alguma a respeito das dificuldades do coronel e da mulher, um ser a quem «as perturbações respiratórias obrigavam […] a perguntar afirmando»:

O coronel destapou a caixa do café e verificou que não havia mais que uma colherinha. Tirou a panela do fogão, despejou metade da água no chão de terra, e com uma faca raspou o interior da caixa para dentro da panela até se soltarem as últimas raspas de pó de café misturadas com ferrugem da lata.

 Um autor clássico como García Márquez não precisa que as suas histórias se identifiquem com os acontecimentos do presente. Elas sobrevivem só por si, em todos os tempos. Ninguém Escreve ao Coronel foi publicado pela primeira vez em 1961 e é, juntamente com toda a qualidade que o liberta da atualidade, um romance que poderia ser baseado nas notícias do jornal de hoje, o que não é motivo de alegria.



A história de Ninguém Escreve ao Coronel é simples, elegante, preocupante e, pelo que infelizmente se pode constatar, eterna. Os governantes gananciosos prometem. O povo sofrido e crente aguarda. O coronel estava na lista de espera para a atribuição da reforma mas a sua vez nunca mais chegava. A vida dele e da mulher era de miséria. O filho fora assassinado pela polícia por distribuir propaganda da oposição. O casal conseguiu algum dinheiro com a venda da máquina de costura de Agustín, o filho, que era alfaiate, e tinham esperança no galo, preparado para apostas e combates. O problema é que faltava mais de um mês para a luta.



Sem dinheiro, o coronel e a mulher discutem de que forma poderão resolver o problema. A mulher receia que o galo não ganhe a luta. O romance termina com a resposta aliviada do coronel:


– É um galo que não pode perder.

– Mas supõe que perde.

– Ainda faltam quarenta e cinco dias para começarmos a pensar nisso – replicou o coronel.

A mulher ficou desesperada.

E entretanto o que comemos – perguntou, e agarrou o coronel pelas bandas do casaco do pijama. Sacudiu-o com energia.

– Diz lá, o que vamos comer.

O coronel precisou de setenta e cinco anos – os setenta e cinco anos da sua vida, minuto a minuto – para chegar a este instante. Sentiu-se puro, explícito, invencível, no momento de responder:

– Merda!

Em Ninguém Escreve ao Coronel, de forma muito discreta, Gabriel García Márquez apresenta algum do realismo mágico que seria consagrado, alguns anos depois, em Cem Anos de Solidão. Em 1982, o colombiano receberia o Prémio Nobel da Literatura. Em 2009, García Marquez, sem dúvida um dos grandes da literatura universal, anuncia que não escreverá mais livros.