A epidemia
O sol quase a pino, um calor quase infernal, quase meio-dia, num dia de muitos quases. Alguns quase perderam o ônibus, outros quase perderam a hora, uns tantos quase perderam um amor, poucos quase foram felizes. O vai e vem de pessoas fazia qualquer um desaparecer no meio da multidão, cada um com seu cada qual. Mudas e robóticas as pessoas seguiam o fluxo cotidiano: casa, trânsito, trabalho, trânsito, casa. Foi aí, no meio do tudo/nada que o homem caiu. Caiu assim à toa. Não esbarrou em ninguém, não tropeçou, não deu um grito, não reclamou de nada, apenas caiu assim, como um fruto despenca do pé. Com a mão em torno do pescoço e os olhos saltados das órbitas o homem tinha a cara do desespero. Em poucos segundos se formou uma pequena aglomeração em volta do homem caído:
- Chama a ambulância! – as vozes gritavam aflitas.
As pessoas mais solícitas tentavam todas as técnicas de emergência aprendidas na televisão. Estica o homem no asfalto, faz massagem cardíaca, dá tapinhas na cara, dá água ou qualquer coisa que o tirasse daquele estado angustiante. Nada de melhora. Ele permanecia com o olhar perdido, as mãos agoniadas como se tentassem tirar uma corda invisível que o sufocava.
A ambulância tardou apenas o tempo do trânsito caótico. Levaram o homem para hospital mais próximo. Correram com a maca e começaram a examiná-lo. Pressão um pouco alterada, mas nada preocupante. Coração um pouco acelerado, mas nada demais. Oxigenação do sangue em perfeita ordem. Temperatura elevada. Infecção, concluíram. Os exames comprovaram que nada havia. Tudo normal. E o homem agonizava, quase cianótico na maca do pronto atendimento. Dá-lhe antitérmico, analgésico, antialérgico, antibiótico e qualquer coisa que combatesse o que desconheciam. E o homem continuava com o olhar de quem pede socorro. Não falava, não gemia. Apenas tentava desfazer o nó invisível que lhe apertava o pescoço. Uma junta médica se formou. O que fazer com o que não se sabe?
- Interna e isola. – o médico chefe do plantão falou com a sabedoria da ignorância.
Assim foi feito. Levaram o homem pra um quarto isolado dos demais e passaram a monitorá-lo. De hora em hora exames refeitos, sinais vitais medidos e nenhuma melhora. O enfermeiro, entre um exame e outro, já angustiado com a agonia do homem, resolveu conversar com ele. Embora ele não conseguisse falar, talvez desse alguma pista do que estava acontecendo. Perguntas de praxe e o olhar suplicante por ajuda do homem.
- Eu queria poder ajudar o senhor...- desistiu o enfermeiro, reconhecendo sua impotência diante do desespero.
O homem, então, ergueu uma das mãos. Fez um gesto solto no ar, como quem escreve no vazio.
- O senhor quer uma caneta?
Sem palavras o homem se fez entender. Talvez quisesse deixar algum recado para alguém ou quem sabe explicar o que estava acontecendo. O enfermeiro correu e arrumou uma caneta e um bloquinho de receitas para o agonizante deixar seu recado.
Com dificuldades o homem sentou-se na cama e com as mãos trêmulas ele começou a escrever. Uma folha, duas, três. Os minutos passavam e ele escrevia compulsivamente. Um bloquinho inteiro, frente e verso. O enfermeiro conseguiu mais alguns bloquinhos e observava incrédulo o rapaz escrevendo como um louco. Achou melhor chamar o médico de plantão, que achou melhor chamar o chefe dos médicos, que achou melhor chamar a junta médica pra ver o que acontecia. O homem escrevia num transe. Não atendia aos chamados, apenas olhava para o vazio vez por outra e sorria. Ficou assim por horas, até sentir-se aliviado de si. Deu um suspiro aliviado ao escrever a última linha. Levantou-se e espreguiçou-se como quem desperta de um sono profundo.
- Estou bem – afirmou.
Os médicos não acreditavam no que viam. Nos bloquinhos escritos havia um romance, duas crônicas, quatro contos, vários poemas, alguns haicais e sonetos. Resolveram repetir todos os procedimentos já feitos. Tudo normal. O homem estava melhor do que antes. Não havia mais como mantê-lo no hospital. Enquanto decidiam o que fazer com o paciente curado por si só, um atendente interrompe o silêncio reflexivo dos doutores.
- Chegou mais um, igualzinho a esse aí.
Correram todos até a emergência. Um garoto, novo ainda, dezessete, dezoito anos talvez, com os mesmos sintomas. Exames normais, olhos saltados nas órbitas e as mãos em torno do pescoço tentando desfazer o nó. Correram com o garoto para o isolamento e o colocaram no mesmo quarto do homem, que já se sentindo muito bem, conversava animadamente sobre seus escritos com algumas enfermeiras. O moleque na cama agonizava.
- Dá um bloquinho pra ele – sugeriu um enfermeiro.
Foi feito rapidamente. É difícil olhar para os olhos do desespero. Receituário e caneta nas mãos do menino. Ele olhou aliviado ao ver a caneta em suas mãos. Desprezou o receituário e foi para as paredes. Uma enfermeira mais velha tentou impedi-lo, mas o chefe do plantão fez um sinal para deixá-lo. Traços, que se transformaram em desenhos, rostos, folhas, flores, letras, animais. Tudo brotava das paredes imaculadas do hospital. Algum tempo depois, um painel estava concluído. O rapaz suspirou aliviado e sorriu.
-Estou bem – afirmou.
Todos olharam para ele incrédulos. O garoto parecia ótimo. Olhava sua obra e comentava com as pessoas do quarto sobre a sua criação. Enquanto se decidia o que fazer com os dois curados, outro enfermeiro interrompeu os pensamentos técnicos da junta médica que se formara:
- Chegaram mais uns cinco ou seis, do mesmo jeito que esses dois. E tem mais, no refeitório o psiquiatra está cantando, acho que é essa coisa de ópera e tem umas duas ou três enfermeiras dançando.
A junta médica saiu ensandecida pelos corredores do hospital. Havia um ar caótico no local. As pessoas não paravam de chegar. Todas com os mesmos sintomas: as mãos no pescoço, os olhos saltando das órbitas, febre e desespero. Só se acalmavam depois de alguma coisa absolutamente inusitada. Havia os que cantavam, os que escreviam, os que compunham. Alguns médicos já se mostravam-se contaminados pelo estranho acontecimento. Na ortopedia, alguns faziam esculturas com o gesso. Na pediatria, desenhos coloridos invadiam as paredes e corredores. Na UTI podia se ouvir cantos e batuques. O alto falante do hospital requisitou a junta médica na sala do diretor do hospital. Algo grave estava definitivamente acontecendo.
- Senhores, estamos diante de uma epidemia nunca antes vista. Os últimos boletins afirmam que o que se passa aqui não é diferente do que acontece na cidade inteira e tudo avança em uma proporção devastadora.
O diretor ligou a televisão. Os plantões de todas as emissoras noticiavam o insólito. A cidade estava em caos. No metrô um grupo dissidente de uma grande orquestra se apresentava em plena plataforma. Nas ruas o trânsito era interrompido por grupos de dançarinos que faziam performances entre os carros. Poemas eram ouvidos aos quatro ventos. Nas escolas as cores se espalhavam pelos muros, frutos das criações infantis. A polícia foi chamada, mas em muitos casos os policiais se uniam ao movimento e aumentava a massa de delirantes. A junta média, atônita, assistia ao que era noticiado. Um dos médicos começou a desenhar na agenda. Outro batocava a caneta na mesa, tentando em vão controlar o impulso do ritmo, sob o olhar incrédulo dos demais.
- Em breve, senhores – prosseguiu o diretor – todos nós seremos contaminados. Não há nada que possamos fazer. A epidemia é definitiva, ninguém se salvará.
Os olhos tristes do diretor contrastavam com a luz e o brilho que a cidade emanava através de cores e sons. O mundo sucumbiria definitivamente à arte.
por Claudia Marczak