As avós, de Doris Lessing
Quatro anos antes de receber o prêmio Nobel de Literatura, e já contando 84 anos, Doris Lessing (1919-2013) publicou um livro chamado The Grandmothers: four short novels (As Avós: quatro romances curtos). Aqui no Brasil, retiraram o romance que dá título à coletânea e publicaram de forma independente. Assim é que As avós (Companhia das Letras, 104 páginas) chegou ao leitor brasileiro em 2007, numa tradução execrável de Beth Vieira, que eu custo a acreditar que tenha sido aprovada pela Companhia das Letras, mas sobre isso falo mais adiante.
Sempre tinha ouvido falar nessa escritora, mas nunca tinha me atentado verdadeiramente para os seus escritos. Em mais de 60 anos de carreira, Doris Lessing fez-se pública ao mundo nas mais diversas formas: romances, contos, novelas, peças. Sua verve, ao que parece, conseguia conceber desde tramas que descrevem lugares comuns, a tramas de ficção científica - pelo que foi enormemente criticada.
Era também conhecida por ser uma mulher que não esperava se fazer ouvir somente quando publicasse algo: suas declarações, muitas das quais polêmicas, deixaram marcas em sua carreira. Por exemplo, quando comentou que o ataque sofrido pelos Estados Unidos em setembro de 2001 como algo que "não foi tão terrível assim, se comparado aos estragos causados pelo Exército Republicano Irlandês por décadas". Ou, em 2007, quando chegou em casa, viu um amontoado de repórteres na frente da sua casa, desceu do carro meio claudicante, no que um repórter enfia um microfone no rosto e pergunta: "A senhora não está sabendo da notícia?", ao que ela responde, lacônica e confusa: "Não". "Você ganhou o prêmio Nobel de Literatura", informa o repórter a ela. Sua reação: "Oh, Cristo!", e acrescenta: "Eu não dou a mínima".
Ela não fazia polêmica por fazer. Era uma mulher engajada social e politicamente. Fez discursos contra o sexismo, a guerra do Vietnã, e praticamente todas as questões de seu tempo, além dos diversos fatores envolvendo as questões religiosas do seu país de origem, o Irã (na época em que nasceu, Pérsia), apesar de ser filha de britânicos.
As avós me foi sugerido por uma amiga, e vendo sua empolgação, voltei quanto à minha declaração a mim mesmo de que não iria lê-la tão cedo (não lembro de ter demonstrado essa falta de interesse a mais ninguém e, além do mais, quem se importa?).
O romance gira em torno de duas mulheres, Roz and Lil, que são amigas íntimas desde a infância. A relação que têm uma com a outra é a mais duradoura e mais forte da vida de ambas, sobrevivendo aos seus próprios dilemas domésticos.
A trama começa numa praia idílica, dando ênfase a um personagem - uma garçonete de um café que fica nas cercanias do local - cuja relevância na trama é justamente ser esse olho externo observando o que se passa, como se fosse o olhar do leitor. Na verdade, o leitor passa a ser aquele personagem. A cena envolve as duas senhoras, duas garotinhas e dois homens mais jovens, todos à beira da praia. Enquanto a garçonete olha o que se passa, ela vê uma mulher caminhando furiosamente na direção do grupo com uns papéis na mão, pegar as duas crianças, dizer umas coisas com as mulheres e sair dali. Do lado de cá da página, o leitor é capaz de sentir o ódio fulminante da personagem. Ao invés de nos contar o que aconteceu, a autora corta a cena e nos leva ao momento em que Roz e Lil se conhecem, na pré-escola, e todos os seus caminhos a partir daí, como a escolha dos esposos, a compra de casas vizinhas e até o nascimento de seus filhos em datas aproximadas.
Doris Lessing consegue descrever, num parágrafo, grandes momentos da vida das protagonistas, e torná-las personagens críveis. E é assim, de um parágrafo para o outro, que compreendemos por que o marido de uma delas resolve sair de casa, o que acontece com o marido da outra, abrindo espaço para uma nova intimidade na relação das amigas, e também para o que acontece em seguida com todos os personagens.
A trama me pareceu um pouco previsível, o que não é importante. Não se trata de um romance de mistério, afinal. O que acontece aos personagens não é se não consequência dos seus próprios atos, desejos e maturidade - ou falta dela. Doris Lessing construiu avós firmes, dínamos capazes de agir conforme suas vontades, ao mesmo tempo em que também descreve seus medos e incertezas.
O romance, lido num só ou em poucos fôlegos, seria uma leitura ainda mais preciosa, não fosse a péssima tradução, que macula a obra e faz o leitor se esforçar pra entender traduções literais de expressões idiomáticas do inglês, por exemplo. A tradutora carrega na literalidade, e demonstra seu total desinteresse e falta de compromisso com a obra. Não compreendo como a editora conseguiu dar o aval para uma edição tão bonita sair com uma tradução tão mal-feita e inescrupulosa.
Contudo, foi um bom começo, já que este foi meu primeiro livro de 2014. Infelizmente, Doris Lessing traduzido por Beth Vieira, nem de graça.