Mentir, jogar, sentir
Não sei quando comecei a utilizar minhas técnicas de imaginação para benefício próprio. Porém, fazendo um exercício de busca interior, me deparei com o momento que comecei a mentir predeterminadamente sem ser para me livrar de alguma possível traquinagem.
Minha vítima – ou melhor, minha cúmplice – nas primeiras mentiras dentro dessa nova modalidade era minha vó materna. Acho pouco provável que ela acreditasse em tudo que eu dizia, mas havia um secreto código de camaradagem entre a gente. Viciada em jogo do bicho, vó me estimulava a dizer com o que sonhava. Dizia que os sonhos traziam os melhores palpites para o jogo.
No início comecei com a sinceridade dos ingênuos: só dizia o que sonhava ou o pouco que lembrava, assim como omitia o mais íntimo que havia. Quando ela acertava no bicho, ganhava algumas pratas. Fui rápido no gatilho: sem sonhos, sem moedas. Passei a sonhar sempre com os meus bichos favoritos da jogatina. Independente da possível recompensa, observava minha vó sempre empolgada com a expectativa. Isso nos fazia bem.
Mais adiante percebi que não precisava sonhar diretamente com algum animal, ela mesma fazia associações com determinadas situações. Sonhar dentro de uma piscina de suco de manga, de alguma maneira, a fazia apostar na vaca. Sempre fiquei tentando bolar algo que a fizesse jogar no avestruz, mas sem dizer nada diretamente, apenas insinuando.
Foi assim que peguei gosto pelas mentiras. Passei a fazer ficções sem sonhar. Estimulávamos a imaginação um do outro para acertar no bicho. As moedas já não eram importantes para mim, elas eram apenas uma consequência do esforço que era feito. À medida que fui crescendo e vieram outros netos, nossa relação foi mudando.
Hoje, está mais relacionada à cozinha, às sopas que preparo que, vez por outra, ela vem filar. Ainda me espanta saber que uma das pessoas que estão diretamente ligada ao meu processo criativo, não sabe nem ler. E que mais implicitamente ainda me ensinou que os níqueis não são nem o fim nem o sim da poesia, apenas um resultante.
por Fred Caju
* Fred Caju é poeta e editor do site Castanha Mecância. (caju.fred@gmail.com)