Poemas de Dércio Braúna
DIÁLOGOS [1]
INQUIRIDOR:
“Será que Deus não consegue compreender a linguagem dos artesãos?”*
INQUIRIDO:
O deus havido no mundo, ao contrário do gastado dizer dele como “artesão do universo”, nunca foi capaz de compreender a artesania. Sua mecânica de existir é da ordem da fabricação: deus faber, não deus laborans. Isto faz dele o que é: uma instrumentalidade suprema.
“Aqui é realmente verdade que o fim justifica os meios; mais que isso, o fim produz e organiza os meios. O fim justifica a violência cometida contra a natureza para que se obtenha o material, tal como a madeira justifica matar a árvore e a mesa justifica destruir a madeira.”**
Aqui o homem é, a um só tempo, o material e a coisa violentada para sua obtenção.
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[*Herberto Helder, Ofício cantante: poesia completa. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009, p. 441]
[**Hannah Arednt, A condição humana. 11 ed. rev. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p. 191]
FALAS LAVRADAS
DIÁLOGOS [2]
INQUIRIDOR:
“Um poeta desvia-se do seu precursor ao ler o poema do seu precursor executando um clinamen [“má leitura”, “desvio”] em relação a ele.”*
INQUIRIDO:
Eis a “pedra de tropeço [que] quebra o sono dogmático”.
Sem intermédio nem remédio, sem o receituário dos herméticos feiticeiros em suas cúpulas à entrada do poema; sem mapa nem rota (enfiar “um pé aquém e o outro pé além”); sujar-se nas estradas de aldeias, carregar nas unhas dos pés o pó dos antigos; enlamear-se numa tarde fêmea e madura em que troveja “o espanto e a surpresa” depois do sol adâmico: em suma, fazer um desvio – mas com o gozo de quem atravessa por dentro o poema.**
UMA TEORIA:
Deslocalizar uma história pura em favor de uma “história conectada”***.
UMA POÉTICA (PELA TEORIA):
Unir o homem só sob a marquise da cidade imensa ao maxilar inferior dos mortos carregados pelos primitivos.****
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[*Harold Bloom, A angústia da influência: uma teoria da poesia. 2 ed. Trad. Miguel Tamen. Lisboa: Cotovia, 1991, p. 25]
[**Sob a influência “luterana” de Wally Salomão, Pescados vivos. Rio de Janeiro: Rocco, 2004, p. 43]
[***Sanjay Subrahmanyam, Impérios em concorrência: histórias conectadas nos séculos XVI e XVII. Trad. Marta Amaral. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2012, p. 17]
[****Na arqueologia de Carlos Drummond de Andrade, Antologia poética. 51 ed. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 232]