Nu, de botas
A infância retratada de forma despudorada e perspicaz pelo olhar de um dos nossos melhores cronistas contemporâneos
A leitura desse livro começou com um equívoco.
Eu ando acompanhando relativamente de perto - ou não tão perto assim, como ficará claro daqui a pouco – a trajetória da série Amores Expressos, polêmico projeto que enviou autores brasileiros para os mais diversos lugares do mundo - Berlim, Tóquio, Lisboa são só alguns deles. A ideia inicial era utilizar o patrocínio da Lei Rouanet, o que acabou não acontecendo depois de tanta confusão na mídia. Eles deveriam voltar desses lugares e escrever uma história que tratasse de algum tipo de amor. Lá eles também foram acompanhados por uma câmera filmando sua interação com a cidade, e havia – ou há, não sei ao certo – a ideia de que alguns dos livros possam virar filmes.
O certo é que eu havia lido em algum lugar que o Antonio Prata era um dos que haviam ido e que Nu, de botas (Companhia das Letras, 140 páginas) seria sua primeira obra de ficção, a sair pela tal série, em sua totalidade lançada pela Companhia das Letras (desde que o livro fosse aprovado, e já se sabe que nem todos foram, fora os autores que, mesmo tendo ido, abandonaram o projeto de escrever um livro sob encomenda).
Só que a coisa não foi bem assim. Eu comprei o livro certo de que era o tal livro dele da série. Acontece que, pelo que tenho observado, a Companhia das Letras tem buscado fazer duas coisas nos últimos tempos: ajudar a revigorar certos gêneros meio adormecidos no Brasil: a crônica e a poesia. Assim, tem publicado vários autores desses dois gêneros, que até bem pouco tempo não eram muito a seara da editora (e eles até diziam isso em textos e vídeos institucionais).
Quando o livro chegou, nada d'eu encontrar referência alguma à série na capa, na última capa, nada. Quando abri o livro, li lá nas informações técnicas: "Crônicas brasileiras". Pois bem: então eles convidaram o Antonio Prata, que tem sido apontado como um dos grandes novos nomes em se tratando de crônica brasileira, para publicar um livro de crônicas, e não o tal romance... Tudo bem, então! "Tudo bem" porque eu já tinha lido uma coletânea dele, tinha achado bastante interessante, e depois passei a lê-lo na internet - e foi o que fez com que Nu, de botas pulasse vários outros livros da fila e fosse lido com o cuidado e o prazer que o pequeno volume merece.
Antonio Prata
Não me arrependi. Pelo simples motivo de que é impossível. Com humor, delicadeza, grande sensibilidade e espirituosidade, Antonio Prata nos leva a revisitar cada momento porque passamos durante a infância. Os amigos que vamos conquistando, as brigas com esses mesmos amigos, com os irmãos ou pais, as férias, os avós, as descobertas da infância, o excesso de imaginação, o primeiro amor, o desejo, as frustrações. Está tudo lá.
Há, claramente, textos melhores que outros, mas não existe uma só crônica ruim. Aliás, como todo o livro encerra o mesmo tema - a infância - é complicado saber onde termina a memória e começa a invenção. Nem poderia ser diferente, já que as crônicas (disfarçadas de contos, ou contos disfarçados de crônicas; ou ainda crônicas-contos) resgatam lembranças de quando o autor tinha três, quatro anos, até uns dez ou onze. Não há como lembrar claramente todos os episódios narrados, é claro, e o próprio autor já declarou isso.
A beleza da sua arte reside justamente aí. Ler Nu, de botas equivale a minutos gastos neste lugar onde tantos reclamam de não poderem mais estar (o que não é o meu caso: eu não voltaria nem por meia hora à minha própria infância). A coletânea, entretanto, não tem tom nostálgico, bucólico nem saudosista; é, antes, uma reunião de textos que celebram um período a um só tempo mágico, fantástico e surreal - e que diz tanto sobre a nossa realidade enquanto adultos.
Eis aí, na nova obra de Antonio Prata, um livro para ser lido não apenas por quem gosta do gênero, mas por todos aqueles que são capazes de olhar com leveza e perspicácia para dentro de si mesmos e ainda assim serem capazes de encarar o mundo sorrindo.
NOTA
O texto aqui publicado faz parte de uma parceria entre o LiteraturaBr e o Blog Qual é a tua obra?