Os moradores da torre
Eles chegaram primeiro.
Eles eram os habitantes mais antigos daquele terreno inóspito. Estavam ali desde antes dos homens, desde antes das ruas. Surgiram no mesmo tempo das árvores, antes que o carnaubal desse lugar ao campo em que se cultivam nada mais que mortos e lembranças de vivos.
Eles viram o juazeiro erguer-se severo, pomposo. Assistiram ao espetáculo do ipê debulhando o roxo na terra quente. E presenciaram também o dia em que os homens derrubaram os troncos antigos, desabrigaram famílias, trouxeram seus muros, suas estradas, seus mortos.
Em poucos meses se ergueu o que souberam ser uma capela. A cada domingo chegavam os homens em mutirão. Uns doavam tijolos, outros areia, cimento; o pároco conseguira as carradas d’água na prefeitura; e quem não tinha o que doar trazia nas mãos o trabalho como oferta.
Onde antes havia a caatinga, agora se via a torre amarela encandeando as vistas de quem passasse. E era ali que eles moravam – despejados na derrubada das árvores, refugiaram-se no alto da igreja.
Ali imperavam os moradores ancestrais, os primeiros e eternos donos do lugar, marcando o chão com sua sombra, tão negra quanto eles próprios.
Os dias eram sempre quentes, e à tardinha sempre corria o vento vindo do litoral. Tempos atrás o ar sibilava por entre as palhas da carnaubeira e trazia assombrosos e lindos uivos do Aracati.
Agora a brisa batia muda e seca no paredão da capela, e eles aproveitavam ao menos para planar, observando as poucas pessoas que apareciam.
Havia dias, no entanto, ao menos uma vez por semana, em que as portas do prédio agourento se abriam, recebendo uma pequena multidão.
Era a única ocasião em que havia muitos vivos por ali, e do alto os antigos moradores assistiam ao evento. Chegavam as famílias de preto, trazendo o morto encaixotado à frente. Era sempre momento de muito choro, e os seres da torre fitavam cada movimento daqueles que pisavam o chão.
Era repetido sempre o mesmo rito – uns logicamente o performavam de maneira suntuosa, enquanto que outros entregavam seus mortos à terra de modo tão pobre quanto viviam. Mas a essência do ritual permanecia a mesma em todos os casos. Chegavam os chorosos em procissão, trazendo o defunto; passavam pouco mais que meia hora na capela, cantando e recitando certas frases que decoravam sem entender muito bem; lacravam o esquife, para então depositá-lo no solo. Por fim, após soterrar o ente que se fora, ornamentavam o leito de podridão com flores de papel, velas, terços e estatuetas.
Houve, porém, certa vez em que se rompeu a santa rotina do sepultamento. Uma vez, para nunca mais ser esquecida, para ser exemplo. Um lapso que seria mencionado em tom de admoestação em cada velório que viesse a acontecer naquele campo pútrido.
Chegando o cortejo defronte à capela, ouviram-se gritos de uma das mulheres. Empasmecida, ela apontava para o morto, que inexplicavelmente abrira os olhos.
A histeria se espalhou entre todos, e quando um dos homens soltou o caixão, os outros perderam o equilíbrio, derrubando o cadáver na calçada. De ventre para cima, o corpo inerte parecia contemplar o céu refletido em seus olhos de um azul vibrante.
Do alto, os moradores da torre ficaram fascinados por aqueles dois pontos de luz azul. O maior deles, mais afoito, mergulhou insolente, e na tentativa de levar para si um dos olhos, conseguiu somente furar o rosto do defunto, desfazendo o trabalho do tanatopraxista.
Os familiares do morto avançaram revoltosos, tentando espantar o invasor. Foi nesse instante que uma revoada negra avançou sobre as pessoas, que correram para o interior da igreja apavoradas, cobrindo o rosto com as mãos, clamando rezas desesperadas ao deus dos homens.
Mas Eles viviam ali antes mesmo do deus dos homens. E desde aquele dia, todos haveriam de lembrar que Eles chegaram primeiro.
E quando cada uma daquelas pessoas morresse, os moradores da torre ainda estariam lá, no alto, esperando, observando.
por Maik Wanderson