16 de janeiro de 2014

O rapaz de mil faces

ilustrador: felipe campos

 

Era já de praxe. Acordava cedo, três ou quatro goles de café e o hábito de lembrar-se que o relógio ainda estava atrasado. Na casa ao lado, sempre ao mesmo horário que o seu, saía seu vizinho Luiz, com a mesma farda azul turquesa, sapatos com cadarços frouxos e o zíper da calça semiaberto, detalhes notáveis. Romeo saudava-o com um bom-dia, e a recíproca era sempre a mesma: um aceno manso com a cabeça, acompanhado de meio sorriso entre dentes cerrados. Seguiam então por caminhos diferentes.

O rapaz Romeo era um mulato de pele clara, alto, forte e um jeito largado, daqueles que chama a atenção por onde passa, causando cochichos e olhares presunçosos, fora os ‘psiu’ e ‘eita lá em casa’ que sempre ouvia. Fingia não ligar para aquilo, mas, na verdade, sentia-se um tanto maior, porém, o mais gozado era que mesmo com tais flertadas suas manhãs eram frias, sem pimenta nem sal. No local de trabalho, entre um intervalo e outro, se amassava com Lindalva, com quem já se relacionava há dois anos, e desta ganhava arranhões. Ao sair da labuta, um pouco depois das duas da tarde, amassava-se com Janete, a moça da lanchonete da esquina, que o alimentava todos os dias e dava mais, desta só ganhava gemidos. Depois apanhava a condução que o levava até o terminal, então encontrava-se com Neuza, que o arrastava para um quartinho de sobrado próximo dali, e somente o silêncio e fortes baforadas de ar existia entre os amassos, e desta ganhava chupões estridentes.

Quando terminavam, deixava a dama com um leve beijo nos lábios e a desculpa de que tinha um compromisso inadiável. Corria então dois quarteirões até chegar a uma vilinha chamada Quinta Estação. Na porta do último quartinho, Nicole o esperava, e esta era de todas a mais impaciente. Ao vê-lo chegar, já desabotoava o short amarelo (manchado com algo branco que Romeo nunca soube o que era) e derrubava do ombro as alças do sutiã, e de todos os amassos, aquele era o que produzia mais suor, e desta ganhava prazer. Já era tardinha quando se despedia da mulher que inutilmente tentava prendê-lo na cama, e seguia enfim para casa. No ônibus da volta, apenas queria descansar, nada mais. Tentava entender o porquê de algo que era para ser tão prazeroso não lhe valia nem a metade, algo insistia em não lhe completar o gozo. Descia do ônibus ainda pensando, apenas querendo chegar em casa, tomar um banho e relaxar.

Mas ao cruzar a rua, avistava Luiza o esperando fielmente, com aquelas nádegas de tirar o fôlego, chamativas. Não queria mais, e a mulher arrastava-o para dentro de casa, para o último e costumeiro amasso diário, o mais rápido. Desta só ganhava pedidos. Já esgotado, vestia-se e seguia para casa. Pois bem, acontece que certo dia, quando nem mesmo esperava, o final da rotina mudou, só uma vez. Saia da casa de Luiza, a última de suas damas, quando avistou Luiz andando calmamente, chegando de mais um dia de trabalho. Mil pensamentos passaram por sua cabeça, queria mesmo saber o que havia em Luiz que o incomodava, que lhe dava um calafrio na espinha. Estava na porta de casa e poderia ter entrado, mas algo o fez parar e observar o vizinho entrar em casa, descaradamente. Era a mesma farda azul turquesa, mas agora com cadarços devidamente alinhados e o zíper da calça corretamente fechado.

Saudou o vizinho com uma boa-tarde, e este o saudou da maneira de sempre, mas desta vez o olhou novamente, notando que Romeo o observava fixamente. Então perguntou:

– Tudo bem aí, amigo? Romeo ficou meio nervoso com a pergunta, mas sabia mesmo o que queria. Então mentiu:

– Tudo. Só esperando o chaveiro pra não ter que arrombar a porta, é que perdi minhas chaves. – disse com cara de coitado.

– Se quiser pode ficar aqui em casa, rapaz, enquanto o tal chaveiro chega, eles sempre atrasam.

Romeo então não pensou nem meia vez, foi já agradecendo com um aperto de mão e entrando na residência vizinha. Chegando lá, tudo o encantou. Luiz pediu que ficasse a vontade, só iria tomar um banho e já voltava pra fazer-lhe companhia. Sentou-se então no sofá, ficou observando a casa, tão grande para um homem só. Sob uma escrivaninha viu uma arma, preta e parecia ser pesada, mas não estranhou, já que Luiz trabalhava como segurança. Passaram-se alguns minutos até que Luiz voltou do banho, coberto apenas por uma toalha da cintura para baixo, peito desnudo e forte. Romeo espontaneamente levantou-se, como se fizesse uma reverência ou algo do tipo; Luiz parou e o olhou para ter certeza. Notou as mãos de Romeo um tanto trêmulas, mas fez que nem viu.

– Pode ficar à vontade, rapaz. Só vou aqui no quarto por uma roupa e já volto para te fazer companhia. – falou apontando a direção do quarto.

Romeo apenas deu um sorriso entre os dentes e um leve aceno com a cabeça. Luiz então seguiu para o quarto, e deixou a porta entreaberta. Romeo não conseguiu mais sentar, algo o prendia em pé ali na sala, mas com vontade de caminhar, conhecer outros cômodos da casa, talvez um quarto, quem sabe.

Foi então vagarosamente até na direção da porta do quarto de Luiz, e lá ficou o observando, horas com medo de ser visto, depois, querendo que o outro o viesse para parar de tremer, ou tremer mais, dependia dos dois. Luiz estava pelado, e espreguiçava-se como de propósito, como quem sabia que estava sendo observado, exibia-se apertando o peitoral e contorcia-se todo, para quem quisesse ver. Foi então que Romeo tocou vagarosamente a porta, e esta rangeu, como se quisesse denunciar algo ou alguém. Luiz olhou para Romeo, que estava com a expressão séria, e com um duplo e rápido gesto com as mãos o convidou para entrar. À porta trancada, tudo que se ouvia era o silêncio barulhento dos pensamentos de Romeo. Parecia que estava novinho em folha. Nada precisava ser falado, apenas a troca de olhares era bastante para se entenderem, então deitaram-se na cama.

Duas horas sem parar. Duas horas de arranhões, beijos estridentes, chupões, e muito suor e prazer. Tangido horas pelo selvagem, horas pela calmaria dos suspiros aliviados, sem parar. Pararam então para descansar, uma pequena pausa. Lá ficaram os dois, de olhos abertos e pensativos. Luiz pensava até onde aquilo iria, pois sabia que o custo era acontecer a primeira vez, o resto seria questão de tempo para tornar-se algo costumeiro. Romeo pensava no quão havia sido bom, queria mais, e já tinha certeza em trocar todas as outras vezes por aquela só, onde teve tudo que quis em um só lugar, enfim descobrira o que lhe incomodava tanto em Luiz, enfim ganhara. Luiz levantou-se vagarosamente do seu lado da cama, então Romeo tocou em seu braço, entreolharam-se, e Romeo inclinou um pouco a cabeça para frente, gesticulando o pedido de um beijo. Luiz o olhou por alguns segundos e parecia que o beijo já não iria acontecer, pois este mostrava uma expressão séria e gélida na face, como quem estava com raiva ou ódio. Enfim tocaram-se os lábios e Romeo fez daquele beijo o melhor, enroscando a língua e gesticulando forte, mas Luiz parecia frio, porém, não largava a boca de Romeo, e este vendo que estava demorado o beijo, abriu lentamente os olhos para ver o quanto o parceiro também estava apreciando o beijo, e grande foi o seu susto quando encontrou o parceiro de olhos abertos e fixos o olhando, com a mesma expressão de raiva ou ódio.

Mas em um instante os lábios se afastaram e Luiz deu um sorrisinho de canto de boca a Romeo, e este retribuiu de forma igual. Romeo ficou na cama e o outro foi em direção à sala, iria à cozinha, ou ao banheiro, quem sabe. Romeo imaginou então um delicioso jantar para os dois, e como seria bom. Mas na verdade, não lhe saía da cabeça aquela relação, e o que de novo poderia esperar de Luiz, queria algo diferente e sabia que Luiz poderia lhe dar. Já se vestia quando sentiu uma sombra passando pela porta do quarto, imaginou na surpresa que Luiz deveria ter preparado para ele, que deliciosa surpresa não seria! Vestia-se mais rápido agora, ansioso por ir encontrar o homem que já julgava ser incrível, quando a sombra voltou de desta vez parou na porta do quarto. Romeo ia falar alguma coisa de gentil, mas decidiu virar-se antes para olhar o companheiro, e espantou-se ao ver o que Luiz trazia nas mãos, e achou que só podia ser uma brincadeira, decerto seria. Mas sua expressão foi ficando cada vez mais vazia quando percebeu no olhar de Luiz que nada se tratava de uma brincadeira, talvez de esconder-se, quem sabe, mas mesmo esta era uma brincadeira séria e para pessoas indecisas. Duas mãos levantaram-se segurando algo escuro, o homem com dentes cerrados e olhar de meter medo. No rosto do pobre Romeo, uma lágrima morna descia, tendo certeza agora da última das coisas que iria ganhar, e a certeza de que o chaveiro iria realmente atrasar. De Luiz ganhou três tiros.