12 de janeiro de 2014

Sempre podemos com outro dia de folia



Não foi a primeira vez que li, ao final de um livro, comentários sobre o texto que ali se encontrava e, principalmente, sobre o autor. Também não foi a primeira vez que desconfiei de todos e de tudo que se inscrevia ali, naquelas páginas em que parecia não haver desfecho para o que pode ser chamado de Outro dia de folia, de Eduardo Lacerda. Contudo, os comentários estavam após os poemas que me fizeram rir e pensar, até demais.

Constatar em poemas de outrem o que um dia já pensamos é diferente para mim. Quando leio algum autor que gosto e percebo que ele escreveu, não o que eu queria escrever, mas o que eu pensei um dia e de uma maneira que muitos outros pudessem ler, eu rio de uma maneira que me emociono, porque assim a poesia faz. Geralmente isso acontece quando já sou um leitor assíduo de um determinado autor e que quase sempre me agrada. No final das contas não passa de ser um gosto meu que contribui para que eu me emocione, talvez, mais fácil. Porém, Eduardo Lacerda e suas poesias me fizeram perceber que o desconhecido também pode pensar como nós, leitores, pode nos fazer sorrir em nosso íntimo.

Outro dia de folia chegou até mim e eu já sabia quem era o autor. Um homem louco por literatura e editor da Patuá. Isso era o que eu sabia, apenas. E sempre olhei com maus olhos os editores ou críticos que resolvem escrever, até certo tempo, quando constatei que ser editor ou crítico não é sinônimo de ser mau escritor. E é isso que Lacerda não é.

As mudanças que pude sentir no livro de estreia do editor da Patuá foram mudanças que percebemos ao nosso redor. Tudo tão banal e tão delicado que quase sempre deixamos de lado o pensar sobre esses momentos. É como se não entendêssemos algo que acontece em todas as vidas de todos os homens do mundo. Mas parece que o poeta conseguiu entender:

Há regras à mesa
como em um brinquedo
de quebra-cabeça.
/ E eu não entendo
os dispostos à esquerda
dos pais.
Restos do pequeno
que sentavam ao meio
da mesa (como prato
que se enche
e procura lugar entre
as pessoas). /
Já não me encaixo
depois que aprendi
a olhar de lado
e sair por baixo. (a última ceia)

E por não pensar acreditamos que nos encaixamos, até o momento em que algo nos desperta, nos desilude do que vivemos e podemos começar a olhar por baixo das coisas e perceber que não nos encaixamos em quase nada.  Esperamos, muitas vezes, que a nossa fuga caia dos céus enquanto ficamos sem querer aprender a buscar.

... o desejo retorna ao estado
de espera.
E eu espero.
E eu estou de parabéns. (embrulho)

Parece-me que Eduardo Lacerda quis ter em sua escrita o seu reflexo, sua salvação. Fica claro, pelo menos para mim, que as palavras que são esvaziadas de sentimentos carregam toda a sua busca por sentir-se no mundo, por acreditar que nós somos vários em nós mesmos e que por isso a espera não deve ser a primazia. Parece que ele resolveu, definitivamente, olhar por baixo da mesa.

Lendo os poemas comecei a acreditar que somos vários, talvez não trezentos e cinquenta, como diria Mário de Andrade, mas somos muitos, e que devemos fazer dos nossos vários nossa festa, o nosso outro dia de folia, para percebermos o mundo, os nossos medos e nos vermos como somos internamente:

É certo
que
não há
nenhum
convite,
mas
chegamos
cedo,
para onde
sempre
estivemos:
que insiste:
sim,
você
está
triste. /
E o convívio,
ele é
óbvio, e
quente.
(Inquietos,
seus dedos
contam
sozinhos
os anos
como quem conta passos de dança [e tropeça]
por sobre
a pele)
Quanto há
de
penetra
no dono
de sua
própria
festa? (outro dia de folia, para Flávio Rodrigo Penteado)

Aos poucos, vou percebendo, sem saber se essa é a intenção do autor, que o buscar sentir-se, não desviar do destino é o que importa neste livro. Não devemos fingir que não vemos a vida, como muitas outras pessoas o fazem:

Ela esconde, de sua retina
que se arregala,
e brilha (como cortina
que uma festa encerra)
tudo aquilo
ao que se destina.(por um fio, para Aline Rocha)

Também tenho a impressão que os poemas de Eduardo Lacerda falam por si, como se no ato da criação do poema, os poemas criassem outros poemas dentro de si, como se eles fossem também vários, como no poema Desistência:

Como à cama há pouco tempo
nos olhávamos em silêncio
hoje, nossos ossos, esqueletos
encaram-se, em paralelos.
Comungados da mesma hóstia
repartida e azeda / dois exércitos
negros, iguais, porém divididos
por um mesmo tabuleiro
: o ódio
, encarnando-se por este alimento
toda parte de um corpo
tanta carne sobre
ossos
que é a vida quem nos indaga:
– Ainda haverá sangue?
/ a tristeza
é que
na vida não se
pode,
como no jogo
o roque /

Mas tudo pode ser apenas uma ilusão e talvez a folia já esteja perpetrada em minha interpretação. Talvez somos apenas uno e nascemos com todos os caminhos trilhados, como se fossemos máquinas ou muros em construção, só há uma maneira de existirmos, como se as nossas escolhas tivessem que ser resolvidas com um “dar de ombros”. Mas o que não sabemos, ainda, é que tudo se esconde e precisamos nos manter vivos, mesmo que tenhamos que nos enterrar nas entranhas da terra para conseguirmos crer que somos “arcanos”

Todo homem
é arcano
em seu jogo
e destino. (o falso enforcado)

Para crer que tudo não passa de uma brincadeira e que não devemos acreditar nela, que podemos encontrar em nós, em nossa escrita ou reflexo o que a maré muitas vezes tem a nos oferecer: “água na boca e tempo”.

É preciso
enterrar-se vivo
na areia.
É tudo só mais
uma
brincadeira.
É só mais um castelo – estes
meus castelos –
/ Coisa de rei
que vendo
estrelas cadentes,
e, dormindo ao relento,
ainda
faz pedidos
de maré cheia:
para que a vida lhe derrame
água na boca
e tempero. / (o que se esconde)




Entrevista com Eduardo Lacerda AQUI