Por LiteraturaBr
11 de janeiro de 2014
Mais liberdade, menos palavras
por Junior Bellé
Pense num fio fino. Mas fino como uma linha. Uma linha de seda. Uma linha de seda do terno do Burroghs. Pense num fio fino. Um fino queimando. A queimada é de brasa, relâmpago em campo seco, elétrico e difuso. O que você encontrará no “Letra Livre”, lançado pela Oitava Rima, em dezembro de 2013, terceiro livro de Paulo César de Carvalho, é mais ou menos essa eletricidade esfumaçada. É isso que você lerá nele. Cantará com ele.
“meu pó
não é
de arroz
minha bala
não é
de caramelo
não deixo
ponta
pra depois
meu chá
é de cogumelo” (meu ácido é doce / para william burroughs – página 92)
Como nos livros anteriores, “Toque de Letra” (Nhambiquara, 2010) e “Letra na Clave é Sol” (Nhambiquara, 2012), as poesias de Carvalho não espetam as linhas imaginárias da página. Ao menos não na horizontal, orientação natural de uma linha padrão. Mas apenas o essencial aqui é padrão. Por isso, o poeta verticaliza o verso e a leitura. As linhas verticalizadas tomam de assalto o latifúndio onde estão as terras brancas alinhadas à esquerda. Ali decretam, pela terceira vez – ou talvez decrete Carvalho – a fronteira entre a poesia e a letra de uma canção. “A poesia dele é muito musical, as rimas são inesperadas e surpreendentes. O ritmo já está sugerido no poema, é só sair cantando. Eu tenho vontade de fazer música dos poemas dele assim que leio”, escreve na contracapa do livro, o cantor, compositor e guitarrista Danilo Moraes.
Danilo, que tem incontáveis parcerias não gravadas com Carvalho, além de “Antioperário Sem Patrão” (confira aqui), já devidamente registrada, é um dos três compositores a quem o livro é dedicado: “aos parceiros: viagem através do espelho / para bruno roberti, danilo moraes & thiago galego, meu triunvirato criativo, minha santíssima trindade da canção.” Bruno Roberti lançou há pouco seu primeiro disco “Lar” (confira aqui), que leva três composições em parceria com Carvalho, entre elas “Descarada”, com participação de Seu Jorge. Em janeiro, Thiago Galego grava seu primeiro disco, no estúdio Traquitana, nele, ao menos quatro músicas são parceiras com o poeta. Algumas das prévias de “Seu Par”, “Fim da Linha”, “Ou muda ou mudo” e “Vou vagar meu bem” estão disponíveis para audição. (confira aqui).
Foi Galego quem musicou aquela que, entre todas suas parcerias musicais, é minha favorita. Está lá, na página 82, é dedicada à Amália Rodrigues e Dona Ivone Lara, e chama-se “Nau Frágil”.
“não adianta
enxaguar
nem toda
água do mar
vai lavar
tanta mágoa
de tanto amar
este pranto
não vai dar
pra enxaguar
esta dor
não vai passar
depois
de tanto
navegar
naufragar
no desamor
sem tábua
pra me salvar”
Carvalho é vocalista e letrista d'Os Babilaques e do PCC & a Contrabanda, além de parcerias com uma infinidade de outros compositores de destaque, como Tatá Aeroplano, Pélico, Juliano Gauche Julia Valiengo, Gustavo Galo e Carlos Zimbher. Ainda assim, a musicalidade não é a única característica partilhada por “Letra Livre” com seus antecessores, também profundamente influenciado pelos longos, e cada vez mais frequente, voos pelas bandas das claves, das melodias, dos solos de guitarra, do batuque do pandeiro.
Ele levou realmente a sério quando Leminski profetizou que através das canções sua poesia teria uma aventura de massa. A outra característica partilhada é a transversalidade das dedicatórias, ou melhor, dos objetivos-motivos, sentidos-significados, das desimportâncias e imprescindibilidades das dedicatórias. Com exceção do capítulo “Anagrama – Temático” –, que é exclusivo para suas parceiras com Felipe Chacon – com quem também tem parceiragens musicais –, e do capítulo “Perfume de Haicais”, todas as demais poesias dos outros sete capítulos são dedicadas a alguém: das Mulheres de Chico a Décio Pignatari, da Rainha de Paus a Neymar, de Aristóletes e Chacal a Angela Rô Rô, ninguém escapa. E como escrito, o papel desta dedicatória na poesia é sempre um mistério a se embrenhar. Sem lanterna. Só com a brasa acesa.
“Se Leminski é o rei do trocadilho, Carvalho é o príncipe”, resmungou o vencedor do Jabuti, Reynaldo Bessa, durante o lançamento do “Letra Livre”, na Casa das Rosas, em dezembro passado. Parece exagero. Não é. Leia este livro, veja a velocidade das associações, surpreenda-se com a quantidade delas que você é capaz de perder numa leitura rápida e despretensiosa. A poética de Carvalho é melódica, e muito de sua melodia é construída através de associações semióticas, de jogos de palavras e sentidos, de fonemas cuja fônica é a ponte entre os significados, ritmos e rimas. Perca-se.
“você faz que é descolada
mas não descola da tevê
quer parecer pirada
mas é só pra aparecer
finge que é viajada
mas só viaja em dvd
nunca caiu na estrada
nunca pagou pra ver
sempre queima na largada
não tem perna pra correr
nunca deu uma fumada
nunca bateu um padê
você não passa da entrada
entra só na matinê
nunca curtiu a madrugada
nunca viu amanhecer
não saca a jogada
não saiu do abc
você tá noutra parada
é fissurada em beyoncé
pode perder uma balada
mas não perde um bbb” (dvdbbb / para pedro bial – página 53)