As críticas de Lobão, contidas no seu segundo livro, Manifesto do nada na Terra do Nunca fizeram desta obra a mais polêmica de 2013. O tema central do livro é dilacerar a alma do povo brasileiro a partir de um outro texto-manifesto o Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade. Nesse manifesto, Oswald pretendia não somente modificar a literatura brasileira, ele visionou construir um documento que servisse para modificar uma nação. O projeto de Oswald era ousado. Lobão, a partir das ideias antropófagas, lança o seu Manifesto com foco na atual situação brasileira, portanto qualquer semelhança com a realidade não será mera coincidência.
O livro inicia-se com o poema Aquarela do Brasil 2.0, em sua estrutura e linguagem nos demonstra um típico poema modernista de caráter nacionalista-crítico; através desse poema-prólogo, o autor prepara o leitor para o que virá nas próximas páginas. Lobão continua sua sagaz crítica na primeira frase do capítulo A TERRA DO NUNCA: “Amamos a pobreza”. De fato, amamos tanto a pobreza que o país embora seja uma potência econômica ainda possui milhares nas ruas mendigando o pão de cada dia, amamos tanto a pobreza que muitas escolas são esquecidas pelo governo, amamos tanto a pobreza que simplesmente nos calamos diante de tudo isso. Preferimos gritar gol e nos revoltar se o time que torcemos comete qualquer deslize. No mesmo capitulo, Lobão cita a censura que muitos sofrem por mencionarem falhas cometidas pelo atual regime de governo. É interessante o comentário que ele faz sobre um incidente envolvendo a sua pessoa, leiamos:
Um dia, após chegar de uma turnê, comentei no Twitter que estava irritadíssimo com a infraestrutura do país, as estradas federais numa buraqueira dos infernos, sem sinalização, sem iluminação, os aeroportos caindo aos pedaços, superlotados, voos atrasados, ou seja, não era algo que eu havia lido por aí: eu tinha acabado de vivenciar, de sofrer na pele a precariedade da parada.
Pois bem, por essa declaração, fui instantaneamente admoestado por ofendidíssimos legionários governistas a bradar que o Brasil está muito melhor, que nunca estivemos tão bem, que aquela declaração era puro preconceito, e, sendo assim, fui sumariamente diagnosticado como... brasilfóbico!
Esse capítulo inicial é subdividido por seções, uma das que eu gostaria de destacar é a subseção: A MPB É UMA SIGLA DE PROVETA? Nesta subparte Lobão escava a origem do ritmo brasileiro tão conhecido por ícones como Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, dentre outros. No parágrafo inicial a realidade é posta: Recorremos sempre ao passado quando falamos em música popular brasileira! Você que está lendo este ensaio, diga-me qual o atual grande músico brasileiro no quesito composição? Não digo no quesito vocal, porque para esse quesito têm-se muitos por aí com uma voz exuberante! O Brasil carece de novos grandes compositores! Os nossos maiores compositores já estão avançados na idade, ou então já morreram. The Voice nenhum garantirá uma profunda renovação musical!
Lobão está certo?
Mas o buraco MPBísta é mais embaixo. Lobão argumenta que o estilo foi formado por intelectuais esquerdistas, sendo que qualquer brasileiro que negue a genialidade da MPB sofre sérios constrangimentos culturais. Na década de 1970, a verdadeira música de caráter popular era “Odair José, Waldick Soriano, Lindomar Castilho, Benito de Paula, Paulo Sérgio, Antonio Marcos, Orlando Dias, Jane & Herondy, Roberto Carlos (na década anterior, a encarnação do roquenrou, o Rei da Jovem Guarda), assim como, nas décadas anteriores, Cauby Peixoto (que foi o primeiro cantor a gravar rock no Brasil), Nelson Gonçalves, Orlando Silva, Chico Alves, Silvio Caldas.”Esses para o povo eram sim os grandes cancioneiros populares, eles tocavam sem parar nas rádios (meu pai confirmou isso!), além de populares, vendiam como banana na feira, porém não eram considerados cantores populares por líderes de esquerda. Hoje, esses artistas são tidos como bregas, ou seja, ultrapassados. O que merecia de fato o selo da MPB era os músicos que faziam canções baixo astral, sem energia e sem pulsação rítmica. O mergulho de Lobão sobre a MPB merece ser lido e considerado com calma, é um assunto delicado que o autor conseguiu redigir com exuberância! Eis um dos pontos altos do livro. Lobão desfecha o assunto brilhantemente comentando que a matéria-prima de grandes compositores da MPB é a miséria do povo e sua cultura, pejorativamente nomeclaturada por intelectuais como cultura de “massa”. Melhor nas palavras do velho lobo:
Essa atitude monomaníaca é uma mentalidade concebida pelo filósofo revolucionário franco-argelino Frantz Fanon: a vocação histórica de uma burguesia nacional seria de “se negar enquanto burguesia, de se negar enquanto instrumento do capital, para se tornar totalmente escrava do capital revolucionário”. Com esse discurso de esquerda idiota, fomos vitimados por uma vasta produção de canções dedicadas a traduzir a realidade do povo através do delirante e culpado ponto de vista do intelectual/artista da classe média, no sentido de doar uma verdadeira “consistência” a algo a que o povão não tinha o menor acesso, pelo que não tinha a menor empatia, muito menos interesse: a música de cunho social com letras que deveriam ser... inteligentes.
Daí a grande frase atribuída a Joãosinho Trinta: quem gosta de miséria é intelectual, pobre gosta é de luxo.
A crítica musical de Lobão continua livro adentro, o segundo capítulo intitula-se UM PEQUENO MERGULHO NO MUNDO SERTANEJO UNIVERSITÁRIO (acidentalmente gonzo). Imagine um roqueiro comentando sobre o sertanejo universitário. A começar pelo que muitos pensam ser um estilo profundamente brasileiro há que se comentar que os adeptos desse estilo buscaram não as fontes de nosso sertanejo brasileiro (Tonico e Tinoco por exemplo) o buscaram na América estadunidense! Lobão utiliza um episódio pessoal para construir o capítulo: um dia de gravação para o programa A Liga, da Rede Bandeirante de Televisão. O autor sobre o cenário da festa de sertanejo a que foi submetido a acompanhar comenta:
Logo quando chegamos, perguntei se eles queriam fazer uma externa de apresentação (de praxe), mas o diretor não manifestou muito interesse e disse para entrarmos logo. Ao observar a entrada, fiquei impressionado com o tamanho do local. Parecia uma Disneylândia agrária! Um quarteirão inteiro! Recebemos aquelas fitinhas de botar no pulso e lá fomos nós adentrando aquele lugar de dimensões monumentais. Dava para perceber que era uma casa de altíssimo nível. Pessoas de aspecto próspero, muito bem-tratadas, ocupavam as dezenas de ambientes que o lugar oferecia. Havia vários auditórios de vários tamanhos, pistas de dança, chafarizes, cascatas artificiais, restaurantes, bares, tudo decorado num estilo (aí me caiu a ficha)... num estilo country!
Quando falo country, quero me referir ao country americano.
Fiquei muito surpreso, pois, na minha santa ingenuidade, imaginei se tratar de algo relacionado a um conceito mais nacionalista, pois o universitário, em geral, é sempre tão fiel, tão preocupado em defender nossas raízes. Era um peso para duas medidas, pois todos nós sabemos que o típico universitário culturalista abomina tudo o que vem de fora, como, por exemplo, o rock, sempre tão criticado por ser coisa de alienado, colonizado cultural, coisa de americanizado.
Bom, o sertanejo universitário pode se apoiar no country americano, mas o roque brasileiro não deve se irmanar de culturas exteriores? O toque humorístico de Lobão é a chave essencial desse e de todos os capítulos do livro! O encontro de Lobão com Michel Teló é narrado nesse capítulo com toques de realismo-literário. Bom, avancemos para o próximo capítulo da obra.
VAMOS ASSASSINAR A PRESIDENTA DA REPÚBLICA? É com esse título que o capítulo a seguir se apresenta. Porém não trata-se de um plano mirabolante para cometer algum homicídio, antes disso é um capítulo em que o autor desmitifica a tal Comissão da Verdade, programa efetuado pelo governo com o objetivo de resgatar e fazer justiça aos torturados e perseguidos por militares. Não espere elogios vindos por Lobão. Ele apresenta antes de comentar a comissão, a Declaração Universal dos Direitos Humanos assinada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, logo após argumenta junto a essa Declaração a Comissão da Verdade elencada por nossos governantes. O ensaio é extenso, polêmico e visionário. Esse capítulo deixo para que você leitor o leia e tire suas próprias conclusões.
O capítulo 4 comenta a história do rock no Brasil e os motivos dele ser taxado como um gênero menor. É importante salientar que Lobão pretende não comentar a sua estrutura e comportamento, mas sim comentar os motivos dele não ser inserido na cultura nacional, assim como o samba, a bossa-nova ou a MPB. Portanto mais sobre a cultura brasileira, por tanto mais um choque cultural a vista.
Inicialmente Lobão fala sobre as difusões do rock e seus subgêneros e as suas devidas incorporações em solo brasileiro. O autor fala da precariedade auditiva de gravação de distribuição da marca Rock n'roll em solo tupiniquim. O peso das guitarras, as distorções do contra-baixo e o rufar da bateria, argumenta Lobão, são proibidos em estúdio pois assim não toca na rádio. Para o autor o brasileiro é sensível ao barulho e a distorção da guitarra! Ele diz:
O negócio é retirar o peso, a agressividade, pois o brasileiro, segundo eles, é muito romântico e se assusta com sons mais violentos.
E o mais patético é que esse produto final estuprado, deformado, edulcorado, despotencializado, diminuído, vai tocar nas rádios, borocoxô-borocoxô, do lado das bandas inglesas, americanas, alemãs, japonesas, que, sem exceção, cimentam as bandas “tupiniquins”. Sempre com a argumentação de que o público brasileiro detesta guitarra elétrica. Mas se isso é verdade, por que temos milhões de pessoas fãs de rock ’n’ roll de todos os tipos, feitios e idades?
Não é que o produto rock n'roll brasileiro não tenha qualidade, ele tem sim! Porém a agressividade da musica é muitas vezes barrada na produção do material. Isso muitas vezes retira o brilho do rock made in Brasil. Porém como eu já havia alertado, o problema principal visto por Lobão é que o rock não é visto como algo incorporado à cultura brasileira por ser algo importado. Ora mais, o futebol também é importado, mas mesmo assim é impossível não associar o futebol ao Brasil! Nesse mesmo capítulo, ele argumenta o episódio da Lollapalooza, evento musical realizado pela primeira vez no Brasil em 2012. Lobão foi convidado a participar do evento, ele e outras atrações nacionais em horário inconveniente. O roqueiro fez uma manifestação em redes sociais com direito a artigo publicado em jornal, porém no dia da anunciação das datas acontece o seguinte:
Na manhã de segunda eu ligo meu computador para assistir ao vivo a apresentação oficial do Lollapalooza versão brasileira. Apreensivo, assisto ao vocalista do Jane’s Addiction apresentando exclusivamente as atrações internacionais e meio que se desculpando por não ter tido tempo de se informar sobre as atrações locais, e disse que achava o cantor do Rappa... sexy (!).
Logo em seguida ele passa a bola para o produtor das atrações nacionais, que começa sorrindo e anuncia a seguinte mensagem: “O Lobão, vocês sabem como é que é... tem muito talento, mas é meio lunático, ficou por aí dizendo que o line-up seria separado entre atrações nacionais e internacionais... Loucura... Imagina! Isso nunca aconteceu. Lobão é mesmo um cara muito louco, he, he...” etc. e tal... E começou a anunciar as datas... todas trocadas!
E mais uma vez Lobão se dá mal em verde e amarelo.
No capítulo O REACIONÁRIO, o autor mais uma vez fala sobre a música, o alvo dessa vez é a Lei Rouanet. Pois bem, Lobão comenta a enxurrada de artistas consagrados que se beneficiam de uma lei que na pratica deveria ser para artistas iniciantes. Essa é mais uma realidade na Terra do Nunca.
O capítulo seguinte, VIAGEM AO CORAÇÃO DO BRASIL, comenta a viagem de Lobão à região norte de nosso país. O coração do país que ele foca no título é alma do povo brasileiro, leia e você entenderá o que estou falando. As decepções políticas do autor são narradas no penúltimo capítulo CONFESSO A VOCÊS SOU UMA BESTA QUADRADADA.
A última parte do livro, a cereja do bolo, trata-se de uma carta crítica, porém bem humorada de Lobão ao mentor da Semana de Arte Moderna de 1922: Oswald de Andrade. Esse é outro ponto alto do livro.
“Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente” brada Oswald de Andrade em seu Manifesto Antropófago. O que Lobão escreve a seguir é de sumo questionamento:
Por quê? Por quê? Me perdoe, querido Oswald, ao mesmo tempo que só a antropofagia nos une na nossa miséria social, econômica, filosófica, moral, política, cultural, ela nos aparta de todas as possibilidades de crescimento vindas de nós mesmos e do resto do mundo.
Esse imperativo antropofágico não passa de uma desculpa esfarrapada a encobrir um clamor recalcado de um nacionalismo reativo. O canibalismo, como signo de deglutição crítica do outro, simplesmente nos amputará o próprio sentido crítico.
A antropofagia só nos uniu em torno de um ressentimento soberbo, sonso e velado. Nos decretar antropófagos é uma maneira um tanto imbecil de ser brasileiro, uma afirmação que nos conduz a perpetuar a permanência de toda a nossa precariedade nacional, abdicando de qualquer preocupação em organizar uma sociedade que realmente funcione.
Durante a leitura dessa resenha, acredito que você leitor deve ter notado que Lobão dispara críticas à vasta cultura brasileira: a política, a música, as leis, o governo e até mesmo a nossa produção literária. O autor faz isso com o auxílio de uma linguagem bastante irônica, dando ao livro momentos de riso e de reflexão. Infelizmente o ato de pensar é para poucos, o de reflexão mais ainda, a leitura desse livro faz-se necessária para compreendermos não a face mascarada, mas a face real de nosso país. O livro é munido de uma seleta pesquisa feita por Lobão, portanto o que ele diz é embasado teoricamente, isso é necessário pois há os que gostam de consultar fontes.
Porém algo é preciso ser dito, este livro em suma é uma carta de amor ao Brasil, baseada em sua principal manifestação cultural: a Semana de Arte Moderna de 1922. Porém fica a incógnita: Lobão tem razão? Leia antes de bater.