Por Nathan Matos
20 de dezembro de 2013
Que é isto o homem?
Ouvia falar de Primo Levi, mas não havia tido a oportunidade alguma de me deparar com seus livros nas livrarias por quais passava; porém o dia chegou, lá estava ele, perguntando-me: é isto um homem?
Levar livros assim, como o de Primo Levi, para casa é um perigo para a vida de qualquer um. Vida essa que o autor italiano, formado em Química, aparentemente soube dar valor, depois do que passou no campo de concentração ao qual fora enviado. Livros que proporcionam entendermos um pouco mais sobre nossa condição humana, a partir da interiorização dos personagens, me faz perceber que a leitura é muito mais do que um simples prazer; que pode nos proporcionar a conhecer, além de momentos históricos da humanidade, a dor que os seres humanos podem infligir aos outros por concluírem que são donos da certeza absoluta. Que o seu pensar é o mais valioso e mais criterioso que existe.
O livro de Levi “não foi escrito para fazer novas denúncias; poderá, antes, fornecer documentos para um sereno estudo de certos aspectos da alma humana”, como afirma o próprio autor. E esses estudos da alma humana é que me fazem querer ler mais a cada dia. Perceber como homens que escrevem e que refletem sobre a nossa condição social e existencial tem sido o meu verdadeiro prazer. A minha pergunta básica é se iremos passar por esse mundo e continuar sem saber o que é isto um homem?
Apesar de, no prefácio do livro, Primo Levi nos contar que os capítulos foram escritos sem uma sucessão lógica, o que se percebe é que a estruturação dos fatos nos remete à construção de um sistema que existiu dentro dos campos de concentração de uma forma que podemos perceber tudo como se estivéssemos presentes, ao lado de quem sofria, conhecendo o mundo nos quais aqueles seres estavam inseridos.
Esse “mundo novo” é explicado de forma simples, apesar da sua complexidade, a partir da sua memória, contando como foi estar sob o comando dos alemães desde o momento em que corria perigo para ser transportado para o campo de concentração até o último dia em que pode se perceber, novamente, como um homem livre.
“O alvorecer surpreendeu-nos como uma traição; como se o novo dia se aliasse aos homens na determinação de nos destruir. [...] O tempo da meditação, o tempo do julgamento haviam acabado, e qualquer impulso razoável derretia-se no tumulto desenfreado, acima do qual emergiam, de repente, dolorosas como punhaladas, as lembranças ainda tão recentes, as boas lembranças de casa.”
Ao meu entender, a busca pela compreensão do que pode vir a ser a alma humana pode se dar a partir do que se questiona Levi, quando acabara de chegar ao Campo.
“E lá recebemos as primeiras pancadas, o que foi tão novo e absurdo que não chegamos a sentir dor, nem no corpo nem na alma. Apenas um profundo assombro: como é que, sem raiva, pode-se bater numa criatura?”
Estar no fundo do que a miséria humana pode lhe proporcionar é como se estar no inferno, ou pior, estar no fundo do inferno, não como os círculos de Dante, imaginativos e criados por apenas um, mas aquele sofrido por centenas de milhares do que poderiam ser considerados homens.
“Isto é o inferno. Hoje, em nossos dias, o inferno deve ser assim: uma sala grande e vazia, e nós, cansados, de pé, diante de uma torneira gotejante mais que não tem água potável, esperando algo certamente terrível, e nada acontece, e continua não acontecendo nada. Como é possível pensar? Não é mais possível; é como se estivéssemos mortos. Alguns sentam no chão. O tempo a passar, gota a gota.”
Até então, havia tempo para os que acabavam de chegar ao campo, tempo de questionar junto a si mesmo por quais razões aquilo estava acontecendo, mas apenas até aquele momento, enquanto ainda faziam parte do mundo real. Após adentrar no campo, de ter a cabeça raspada, de ser destituído de seus pertences e ter que marchar todos os dias por várias horas, carregando inúmeros pesos, com calçados com sola de madeira e apenas com uma vestimenta que logo estaria imunda e remendada, após sentir as dores de ser tratado como um mísero homem, o tempo já não passaria a existir, pois não haveria mais homens vivos dentro dos Campos. Todos estavam “mortos” em sua consciência.
“Para os homens vivos, as unidades de tempo sempre têm um valor, tanto maior quanto maiores são os recursos interiores de quem as percorre, mas, para nós, horas, dias, meses fluíam lentos do futuro para o passado, sempre lentos demais, matéria vil e supérflua de que tratávamos de nos livrar depressa. Acabara o tempo no qual os dias seguiam-se ativos, preciosos e irreparáveis; agora o futuro estava à nossa frente cinzento e informe como uma barreira intransponível. Para nós, a história tinha parado.”
Como Levi aponta, todos os que estavam nos campos de concentração já não existiam para o mundo real, pois se sentiam “fora do mundo”, como bem nos conta bem no início do livro. E esse mundo é deixado de lado quando tudo passa a ser dependente da sorte para que se possa sobreviver. Primo Levi conta que não sabia como teve sorte de permanecer vivo quando aconteciam as “seleções”, como ele foi um dos poucos italianos que sobraram em seu campo de concentração e como foi ele um dos escolhidos para trabalhar no Laboratório. Apesar de ser formado em química, ele compreendia, escassamente, que tudo aquilo era sorte.
Assim como quando teve de ser internado no Ka-Be, viver após o Ka-Be era uma benção, uma vez que esse era o local onde ficavam todos os doentes e onde se poderia facilmente ficar mais doente, enquanto se vivia no esquecimento.
“A vida no Ka-Be é vida no limbo. Os sofrimentos materiais não são muitos, a não ser a fome e os ligados às doenças. Não faz frio, não se trabalha, e – desde que não se incorra em alguma falta grave – não se apanha. [...] Pela primeira vez desde que estou no Campo, a alvorada pega-me no meio de um sono profundo; acordar é regressar do nada.”
Lá, no Ka-Be, era possível fazer contatos para tentar se sobreviver. Conseguir qualquer objeto pelo Ka-Be poderia ser motivo para se ter algumas rações a mais indo até a Bolsa. Sim, existia uma Bolsa (de cotação) para se conseguir o que se quisesse.
“A gente pode achar na Bolsa os especialistas em roubos na cozinha, com os casacos estofados por saliências misteriosas. Enquanto para a sopa existe uma cotação praticamente estável (meia ração de pão por um litro de sopa), a cotação do nabo, das cenouras, das batatas é extremamente variável e depende muito de diferentes fatores, entre os quais a eficiência e a venalidade dos guardas de serviço nos depósitos.”
Quase tudo era trocado por rações de pães. Como recebiam um pedaço de pão nos horários de alimentação, que eram escassos, os mesmos poderiam ser trocados por outros objetos e até mesmo por outros alimentos.
Para falar de é isto um homem? com maior profundidade seria preciso que nos debruçássemos ponto por ponto sobre o que nos mostra Primo Levi. Mas partindo do princípio em que não era isso que ele queria, mas sim fazer que percebêssemos como o homem pode agir, entendo que objetivar na sua preocupação de achar que ele mesmo não era mais um homem, como poucos ali, transcrevo uma parte do livro em que Primo Levi comenta sobre Lourenço, que era um dos poucos que permanecia homem, no sentido mais específico da palavras por qual entendia o autor italiano, de que ser homem é ser livre, é poder pensar sobre sua humanidade e agir como tal, ao invés de perder-se em si mesmo:
“Os personagens destas páginas não são homens. A sua humanidade ficou sufocada, ou eles mesmos a sufocaram, sob a ofensa padecida ou infligida a outros. Os SS maus e brutos, os Kapos, os políticos, os criminosos, os “proeminentes” grandes e pequenos, até os Häftlinge indiscriminados e escravos, todos os degraus da hierarquia insensata determinada pelos alemães estão, paradoxalmente, juntos numa única íntima desolação.
Lourenço, não. Lourenço era um homem; sua humanidade era pura, incontaminada, ele estava fora desse mundo de negação. Graças a Lourenço, não esqueci que eu também era um homem.”
E graças a Primo Levi, aos seus momentos dolorosos, às suas dores e inquietações, assim como o de todos os que passaram pelo mesmo que ele, não esquecerei que sou um homem.
por Nathan Matos