Por António Carinha
18 de dezembro de 2013
Jerusalém, de Gonçalo M. Tavares que “Não tem o direito de escrever tão bem”
Ernst Spengler estava sozinho no seu sótão, já com a janela aberta, preparado para se atirar quando, subitamente, o telefone tocou. Uma vez, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze, treze, catorze, Ernst atendeu.
Foi no dia 29 de maio que Ernst pensou em suicidar-se. Foi também nesse dia que Mylia resolveu sair de casa ainda de noite. No mesmo dia, Kaas foi assassinado, Busbeck usou os serviços de uma prostituta e Hinnerk foi morto.
Kaas é filho biológico de Ernst e Mylia que se conheceram no Hospício Georg Rosenberg. Antes disso, com dezoito anos, Mylia tinha sido levada ao médico pelos pais. O médico é Theodor Busbeck. Theodor desenvolve um estudo sobre o mal e o horror ao longo da história.
No capítulo IV, a que Gonçalo M. Tavares deu o nome de Theodor, Hanna, Mylia, no sub-capítulo 2, Mylia encontra-se pela primeira vez com o médico.
Com dezoito anos Mylia sabia já como humilhar os homens. Conhecia o intervalo existente entre a sedução e a repulsa e sabia manipular esse espaço: reduzindo-o, ampliando-o, fingindo que ele não existe para logo a seguir o exibir de modo ostensivo. Só se humilha quem se aproxima, sabia já por instinto Mylia, e preparava-se assim para exercer essa habilidade perversa – de puxar primeiro para depois empurrar – sobre aquele médico que avançava, logo nos primeiros segundos após a saída dos seus pais, para algo que Mylia receava e desejava: um interrogatório.
─ Sou esquizofrénica ─ disse ela, sem deixar que o médico Theodor Busbeck abrisse a boca. ─ Li nos livros. Sei bem o que sou. Sou esquizofrénica, louca. Vejo coisas que não existem e sou perigosa. Quer-me curar?
Menos de dois anos após este primeiro encontro, e com grande espanto de ambas as famílias, Theodor Busbeck e Mylia casavam-se.
Ao oitavo ano de casamento, porém, Theodor Busbeck decide internar Mylia «no piso dois do Hospício Georg Rosenberg, o mais conceituado da cidade». Foi lá que Mylia conheceu Ernst Spengler e foi lá que engravidou deste. Ainda casada, coube a Theodor Busbeck decidir o futuro de um filho que não era seu. Busbeck decide divorciar-se e perfilhar o bebé.
Narrativa densa sobre a condição humana e o poder do acaso, Jerusalém dirige o leitor por uma cidade de múltiplos nomes – talvez a razão para o autor não lhe chamar nome nenhum – onde não há vilões sem coração nem vítimas sem mácula.
A principal preocupação de Jerusalém não é apresentar pessoas, mas antes dissecar-lhes os sentimentos, as aparências, as reações, abrindo deste modo uma janela através da qual podem ser observadas e compreendidas.
29 de maio. Hanna é a prostituta. Hinnerk conhece Busbeck quando este se encontrava com a prostituta, momentos antes de usar os seus serviços. Por isso, Hinnerk afasta-se. Dirige-se para a igreja. Por essa altura, já Kaas, o filho de Mylia e Ernst que Busbeck perfilhou, está morto numa ruela da cidade. Hinnerk encontrou Mylia e Ernst perto da igreja. Hinnerk Obst trazia uma pistola e isso excitava-o. Mylia está caída e Ernst pede-lhe ajuda porque sozinho não a consegue levantar. Hinnerk sentia-se agradado.
Aquela sensação de estar a ajudar alguém, por pouco significativa que fosse essa ajuda, parecia ter modificado algo no seu organismo: um desvio da excitação. Agradava-lhe aquela disposição para ser útil e agradava-lhe os olhares simples daquele casal.
Entretanto, começam os três a brincar com a arma. Quando Mylia a tem na mão, aponta-a à cabeça de Hinnerk. «E se eu disparar? ─ pergunta Mylia àquele homem que estranhamente a começa a atrair e a excitar. Dispare ─ diz Hinnerk, divertido ─ , dispare!»
A história está quase no fim. A frase seguinte é já em novo capítulo, breve e penúltimo de um enredo trágico e violento que está a terminar: «Mylia tem quarenta e oito anos e está fechada na cela de um hospital-prisão. Tem ainda alguns anos de pena para cumprir […]».
Após a prolepse, a ação regressa ao fatídico dia 29 de maio, no momento em que Mylia se dirige para a igreja. Alguém se encontra no seu interior.
A história termina assim:
O som de uma chave na fechadura, alguém abre ligeiramente a porta, muito pouco: ela vê uns olhos a espreitar na sua direção, com medo, cautelosos. Mylia sente que não suporta mais, sente-se a desmaiar, a mão direita tensa segura a arma. De dentro da igreja os olhos não a largam, mas ainda não abriram a porta. Mylia tem de falar para quem está do outro lado da porta da igreja. Ganha forças. Procura dentro do corpo a voz mais firme:
─ Matei um homem ─ diz Mylia. ─ Deixam-me entrar?
Publicado pela primeira vez em 2004, Jerusalém recebeu os mais importantes prémios em língua portuguesa: Prémio Ler/Millenium BCP 2004, Prémio José Saramago 2005 e Prémio Portugal Telecom de Literatura 2007.
José Saramago, aquando da entrega do prémio que leva o seu nome, disse a respeito da obra e do autor: «Jerusalém é um grande livro, que pertence à grande literatura ocidental. Gonçalo M. Tavares não tem o direito de escrever tão bem apenas aos 35 anos: dá vontade de lhe bater!»
29 de maio. Uma pergunta deve ser feita: quem matou o jovem Kaas?
29 de maio. Outra pergunta deverá ser feita: quem matou Hinnerk Obst?