Por LiteraturaBr
28 de novembro de 2013
O Caderno de José Saramago
Sempre que ligo o noticiário da televisão, ou abro a página do jornal, em determinadas notícias me pergunto o que Saramago diria. O autor não é conhecido apenas pelo seu estilo único na ficção, que o levou a receber o Nobel de Literatura, ele possui uma faceta crítica e racional que encanta e, muitas vezes, polemiza. Essa faceta polêmica e crítica de Saramago foi dissecada quando o autor português criou um blog em 2008. Ele o desativou um ano depois, e nesses comentários escritos na “página infinita da internet” podem ser lidas no livro O Caderno (2009, Companhia das Letras).
“Disseram-me que reservaram para mim um espaço no blog que devo escrever para ele, o que for, comentários, reflexões, simples opiniões sobre isto e aquilo, enfim, o que vier a talhe de foice. Muito mais disciplinado do que frequentemente pareço, respondi-lhes que sim, senhor, que o faria desde que não me fosse exigida para este Caderno a assiduidade que a mim mesmo havia imposto nos outros.”
Os textos do blog foram escritos quase que diariamente. Ao ler tais entradas no blog temos a impressão de estarmos tendo um diálogo frente a frente com o até então o único Nobel de literatura em língua portuguesa.
Em sua primeira postagem no blog, o autor declara o seu amor à cidade de Lisboa no texto Palavras para uma cidade. A opinião ácida sobre a religião é também explorada em Perdão para Darwin? Nesse texto, o Nobel comenta um pedido de desculpa póstumo elaborado pela Igreja Anglicana ao autor de A Origem das Espécies. É interessante este trecho, pois nos mostra a mesma maneira irônico-discursivo com que argumenta seus romances:
“Mesmo que Darwin estivesse vivo e disposto a mostrar-se benevolente, dizendo “Sim, perdoo”, a generosa palavra não poderia apagar um só insulto, uma só calúnia, um só desprezo dos muitos que lhe caíram em cima. O único que daqui tiraria benefício seria a Igreja Anglicana, que veria aumentado, sem despesas, o seu capital de boa consciência. Ainda assim, agradeça-se-lhe o arrependimento, mesmo tardio, que talvez estimule o papa Bento XVI, agora embarcado numa manobra diplomática em relação ao laicismo, a pedir perdão a Galileu Galilei e a Giordano Bruno, em particular a este, cristãmente torturado, com muita caridade, até à própria fogueira onde foi queimado.Este pedido de perdão da Igreja Anglicana não vai agradar nada aos criacionistas norte-americanos.”
Na entrada Deus como problema, o autor português argumenta que se a religião mata em nome de deus, logo o problema não é somente as pessoas que compõem o grupo religioso, mas também do deus que elas adoram e que proporciona tantas matanças em geral. E você, caro leitor, pare e reflita um pouco. Quantas pessoas já morreram em guerras ditas Santas? Quantas pessoas já se foram nas inquisições? Quantas almas se foram em nome de Alá? Quantas?
Quê?
O autor, em seu blog, comentava também sobre a situação da política mundial. Mas o que nos gera mais atenção mesmo são as entradas sobre a literatura. Saramago elogia, em um dos textos, o livro Budapeste, de Chico Buarque:
“O mais desassosegador, porém, é a sensação de vertigem contínua que se apoderará do leitor, que em cada momento saberá onde estava, mas que em cada momento não sabe onde está. Sem parecer pretendê-lo, cada página do romance expressa uma interpelação “filosófica” e uma provocação “ontológica”: que é, afinal, a realidade? o que e quem sou eu, afinal, nisso que me ensinaram a chamar realidade? Um livro existe, deixará de existir, existirá outra vez. Uma pessoa escreveu, outra assinou, se o livro desapareceu, também desapareceram ambas? E se desapareceram, desapareceram de todo, ou em parte? Se alguém sobreviveu, sobreviveu neste, ou noutro universo? Quem serei eu, se tendo sobrevivido, não sou já quem era? Chico Buarque ousou muito, escreveu cruzando um abismo sobre um arame, e chegou ao outro lado. Ao lado onde se encontram os trabalhos executados com mestria, a da linguagem, a da construção narrativa, a do simples fazer. Não creio enganar-me dizendo que algo novo aconteceu no Brasil com este livro.”
“Enquanto dedicava o livro para Espmark recordei o que ele nos contou, a Pilar e a mim, sobre os bastidores do prémio que me foi atribuído. O “Ensaio sobre a Cegueira”, já então traduzido ao sueco, havia causado boa impressão nos académicos, tão boa que ficou praticamente decidido entre eles que o Nobel desse ano, 1998, seria para mim. Acontece, porém, que no ano anterior tinha publicado outro livro, “Todos os Nomes”, o que, obviamente, em princípio, não deveria constituir obstáculo à decisão tomada, a não ser uma pergunta nascida dos escrúpulos dos meus juízes: “E se este novo livro é mau?” Da resposta a dar encarregou-se Kjell Espmark, em quem os colegas depositaram a responsabilidade de proceder à leitura do livro no seu idioma original. Espmark, que tem certa familiaridade com a nossa língua, cumpriu disciplinadamente a missão. Com o auxílio de um dicionário, em pleno mês de Agosto, quando mais apeteceria ir navegar entre as ilhas que enxameiam o mar sueco, leu, palavra a palavra. a história do funcionário Sr. José e da mulher a quem ele amou sem nunca a ter visto. Passei o exame, afinal o livrinho não ficava nada atrás do “Ensaio sobre a Cegueira”. Uf.”