22 de outubro de 2013

O terceiro homem, o escritor pobre, e a Guerra Fria


O Terceiro Homem
 é um filme dirigido por Carol Reed, com Orson Welles e Joseph Cotten nos principais papéis. Estreado em 1949, foi produzido por Alexander Korda.

Korda convidou o autor inglês Graham Greene para criar um argumento para um filme. O argumento foi criado, o escritor aceitou a colaboração de outros intervenientes na película, como a do diretor Carol Reed ou a do ator Orson Welles, e o filme foi um sucesso. O livro surge depois do filme. No prefácio da obra, o escritor inglês nascido em 1904 explica parte do processo criativo:

Suponho que a maior parte dos romancistas traz nas suas cabeças ou blocos de apontamentos as primeiras ideias para histórias que nunca chegam a ser escritas. Por vezes lembramo-nos delas passados muitos anos e pensamos com pesar que deveriam ter sido boas, num tempo agora morto. Há anos, nas costas de um sobrescrito, escrevi um parágrafo de abertura: “Despedira-me de Harry havia uma semana quando o seu caixão foi descido no solo gelado de fevereiro, e foi portanto com incredulidade que […]”
Quem estava incrédulo era Rollo Martins. Mas, para saber a razão dessa incredulidade, o leitor deste artigo deverá ler o livro, ou ver o filme! Se fizer ambos, descobrirá alguns pormenores que não coincidem. Mas personagens principais, história, espírito e mensagem são os mesmos.

O enredo desenvolve-se na Áustria, após a Segunda Guerra Mundial, numa «lúgubre e destruída cidade de Viena dividida em zonas pelas Quatro Potências: a zona russa, a britânica, a americana e a francesa».

Rollo Martins é um cidadão britânico que chega à capital austríaca a convite do seu amigo de longa data Harry Lime. Mas logo lhe anunciam a morte do antigo companheiro de escola, atropelado por um automóvel. Ainda a tempo do funeral, Rollo Martins despede-se de Lime com emoção e lágrimas. Depois de ouvir a história do acidente, Martins resolve iniciar uma investigação por conta própria. Não está convencido da veracidade da história que lhe contam e que, entre outros pormenores, implicam a presença de dois homens no local do atropelamento. E tem razão para as suas desconfianças. Cedo descobre que havia um terceiro homem.

Narrado por Calloway, um polícia da Scotland Yard a quem Martins diz que os polícias «são vigaristas ou estúpidos», O Terceiro Homem é um romance policial que não choca leitores habituais, nem desilude quem se inicia no prazer da leitura.

O romance é construído sobre uma linha de que muito pouco se afasta. Martins tenta a todo o custo descobrir quem é o terceiro homem presente no atropelamento e provar que em lugar de acidente há crime. Uma das poucas ocasiões em que o autor conduz Rollo Martins para outros ambientes, mas mesmo assim com um sequestro e muito suspense, resulta num momento verdadeiramente hilariante, quase que num intervalo para descontração, com uma cena de humor que, como muitas outras em diversas situações, explora o mal-entendido, a parecença, a confusão. É preciso que se diga que «a ocupação habitual de Rollo Martins era escrever westerns baratos, que assinava com o nome de Buck Dexter». A partir do apelido com que assina os seus livros, Dexter, Rollo Martins começa por assegurar uma semana de alojamento e comida. O seu interlocutor, Crabbin, pensa que se trata de Benjamim Dexter. Mais tarde, Rollo Martins é obrigado a comparecer numa conferência em que às questões colocadas responde com uma aparente arrogância, que mais não é do que a face visível da sua ignorância.

A primeira pergunta escapou a Martins, mas felizmente Crabbin respondeu satisfatoriamente. Uma mulher de chapéu castanho com um pedaço de pele à volta da garganta perguntou com interesse apaixonado:
 Posso perguntar a Mr. Dexter se ele está ocupado com outra obra?

 Oh, sim, sim …

 Posso saber o título?

 O Terceiro Homem  disse Martins, ganhando nova confiança por ter vencido aquele obstáculo.

 Mr. Dexter, pode dizer-nos qual foi o autor que mais o influenciou?

Martins, sem pensar, disse:
 Grey.  referia-se, claro, ao autor de Cavaleiros da Saga Vermelha, e ficou satisfeito por verificar que a sua resposta tinha provocado a satisfação geral, exceto para um velho austríaco, que perguntou:

 Grey. Qual Grey? Não conheço.

Martins sentia-se agora seguro e disse:
 Zane Grey… Não conheço outro.

A colónia inglesa riu à socapa e Crabbin correu em auxílio dos austríacos.
 Isto é uma brincadeira de Mr.Dexter. Ele referia-se ao poeta Gray […]

−  E chama-se Zane Grey?

 Essa foi a brincadeira de Mr. Dexter. Zane Grey escreveu aquilo que chamamos westerns […]

 E James Joyce, onde colocaria James Joyce, Mr. Dexter?

 Que quer dizer com «colocaria»? Não quero colocar ninguém em lugar nenhum  respondeu Martins. […] agora tinha a impressão injusta de que o estavam a gozar. Zane Grey era um dos seus heróis, e raios o levassem se ia aturar mais disparates.

 Quer dizer que o colocaria entre os grandes?

 Se querem saber nunca ouvi falar dele. Que é que ele escreveu?

Não se apercebeu de que estava a causar uma enorme impressão. Só um grande escritor poderia mostrar-se tão arrogante e original.

Depois de assinar os livros de Benjamim Dexter, Rollo Martins prossegue a sua saga na tentativa de encontrar os culpados pelo estranho acidente que teria vitimado o seu amigo Harry Lime.

Rollo Martins estava numa Viena que, por aqueles tempos, era uma cidade com algumas carências e propícia a traficantes. As negociatas proliferavam. Se algumas não interferiam na saúde da população, já outras eram mantidas por gente criminosa completamente indiferente a valores tão sagrados como a vida. Como consequência da sua investigação, Martins descobriu que o tráfico de penicilina trouxe os grandes especuladores criminosos que «viram ali muito dinheiro».

A guerra e a paz (se se pode chamar paz) tinham feito surgir um grande número de negócios escuros, mas nenhum tão obscuro e vil como este. Os traficantes do mercado negro de géneros alimentares, pelo menos, forneciam alimentos e o mesmo se aplicava a todos os outros traficantes que forneciam artigos a preços extravagantes. Mas o mercado negro da penicilina era um caso muito diferente. A penicilina na Áustria era fornecida só aos hospitais militares; nem os médicos civis, nem mesmo os hospitais civis, conseguiam obtê-la por meios legais. A princípio, esta traficância era inofensiva. A penicilina era roubada por militares e vendida a preços muito altos a médicos austríacos […]. Poder-se-ia dizer que esta era uma forma de distribuição, embora injusta, porque só beneficiava os doentes ricos, mas já a distribuição original também não era justa.
Numa segunda fase, surgiram os grandes especuladores e os ladrões passaram a estar sob a sua alçada.

A terceira parte começou quando os organizadores decidiram que os lucros não eram suficientes. Não seria sempre impossível conseguir legitimamente a penicilina; eles queriam dinheiro mais rapidamente e em maior quantidade enquanto isso era possível. Começaram a misturar a penicilina com água colorida, e, quando a penicilina era em pó, misturavam-na com pó ou areia. […]
E a utilização de areia numa ferida que requer penicilina, bem, não é lá muito saudável. Já muitos homens perderam pernas e braços dessa maneira  e também as vidas. Mas talvez o mais horrível seja visitar o hospital para crianças. Compraram alguma desta penicilina para usar contra a meningite. Algumas crianças morreram e outras enlouqueceram.

Rollo Martins estava agora mais embrenhado do que nunca nas suas pesquisas para desvendar o mistério. Tinha agora quase a certeza de que o desaparecimento de Harry Lime, que «ocupava uma posição importante numa organização de assistência social», estaria ligado ao tráfico de penicilina. E não se enganou. Martins veio a descobrir a surpreendente identidade do terceiro homem.

Pelo meio, a namorada de Harry Lime, Anna Schmidt, é levada pela Patrulha Internacional, numa cena rocambolesca que mistura agentes das quatro potências.

Subiram as escadas e o russo tentou abrir a porta de Anna. Estava bem trancada, mas ele abriu-a com o ombro, sem dar à ocupante oportunidade para a abrir. Anna estava na cama […].
Há um pouco de comédia nestas situações quando não se está envolvido. […] O russo recusou-se a sair do quarto enquanto Anna se vestia; o inglês recusou-se a ficar lá; o americano não quis deixar uma rapariga desprotegida com um soldado russo, e o francês, bem, o francês, penso que o francês achou tudo divertido. Conseguem imaginar a cena? O russo a cumprir o seu dever, observando constantemente a rapariga sem um olhar de interesse sexual; o americano, cavalheirescamente virado de costas, mas consciente […] de cada movimento; o francês a fumar o seu cigarro e a observar com ar divertidamente desprendido a rapariga que se vestia frente ao espelho do guarda-fato; e o inglês estava especado à entrada sem saber o que fazer a seguir.
Rollo Martins acaba por se encontrar com o tão esperado terceiro homem. O encontro tem lugar num «arruinado parque de diversões». O terceiro homem «soube gratificar a mulher encarregada da Roda, de maneira que ficassem com um carro só para eles». Lá em cima, o leitor de O Terceiro Homem verá o Danúbio e as desgraças de quem reduz seres humanos a pequenos pontos sem rosto.

O Terceiro Homem termina com Rollo Martins a caminhar lado a lado com Anna Schmidt, com uma última nota de humor, que recorda a confusão que o nome Dexter originou, e, na última frase, com um desabafo.

Acho que ele não trocou com ela uma única palavra: era como o fim de uma história, exceto que antes de se afastarem da minha vista a mão dela pousava no braço dele, que é como geralmente começa uma história.
Ele era um pobre observador de personalidades, mas tinha cá um jeito para westerns […]! E Crabbin? Oh, Crabbin ainda está a discutir com a embaixada britânica sobre as despesas de Dexter. Eles dizem que não podem autorizar pagamentos simultâneos em Estocolmo e Viena. Pobre Crabbin. E, pensando bem, pobres de nós!