23 de agosto de 2013

Fingidores, de Rodrigo Rosp ou Fingir ou não fingir, eis a questão

É de sabedoria popular que qualquer cidadão se utiliza de máscaras sociais para viver “bem”. E, pelo que tenho vivido, acredito piamente nisso. Até as crianças, quando desejam algo que não podem ter, usam das artimanhas mais fantásticas e diabólicas para conseguirem seu objetivo.

Porém, em meio a tantas máscaras que encontramos no dia a dia, há sempre o sujeito que “solta o verbo”, que diz o que tem para dizer sem pensar nas consequências que pode trazer para si. Caio, personagem de Fingidores, é um sujeito assim.

Ao ter o livro em mãos, pensei que se tratava de algum breve romance ou um livro de contos, até que vi ao lado do enorme nome amarelado Fingidores o seguinte: comédia em nove cenas. Parei, analisei e pensei que era brincadeira. Tirando Nelson Rodrigues, que consegue me fazer rir quando tudo está totalmente deturpado, eu não imaginava que ainda se publicava comédia no Brasil. Há tempos não lia uma. Apesar do julgamento que ia fazendo ao passar as páginas, percebi que eu estava errado e que Rodrigo Rosp, carioca de nascimento e gaúcho por fingimento, não estava para brincadeira ou talvez esteja e eu é que estou levando tudo muito a sério.

No início, o diálogo travado entre Caio e seu melhor amigo, Orteman, parece ser chato e mais um daqueles em que o autor pretende mostrar todo o seu conhecimento sobre algum tema profundo. Não sendo diferente, Rosp escolheu a morte. Mas, há uma diferença entre Rosp e os autores que tentam ser engraçados, profundos; o tema, escolhido para ser aprofundado e que serve como o eixo da comédia, tem sua razão e está muito bem colocado na peça. Sem ele não seria possível existir os Fingidores. Sem ela, talvez, Caio não pudesse ter a oportunidade de rememorar sete momentos de sua vida, com início meio e fim; tendo conquistado esse direito conversando com uma “filial da morte”.

A comédia em nove cenas se concentra em vários momentos da vida de Caio, em que podemos perceber que, provavelmente, tiveram algum significado para ele, pois, ao invés de ter apenas alguns segundos para poder ver toda a sua vida antes de morrer (sim, Caio morre, o que você esperava? Sem isso não há comédia!), consegue subverter o sistema que a morte utiliza e possibilita sete momentos inteiros com início, meio e fim para si. Nesses flashbacks, que são “revividos”, vê-se como Caio agiu a vida toda e de que maneira tratou as pessoas, principalmente as mulheres que amou, ou fingiu amar. Talvez algum leitor queira, ainda durante a leitura, chamar Caio de, digamos, cretino, pois parece que ele não se preocupava em nada com o que poderia acontecer a partir de suas ações. Talvez o rapaz que o atendeu enquanto comprava o caixão para o velho pai não tenha pensado isso, talvez tenha preferido acreditar que Caio era só mais um que estava sob o efeito entorpecente que a morte traz, ou talvez não tenha entendido metade do que Caio discerniu sobre a morte e da maneira como se dá a venda de caixões quando as pessoas morrem:

FUNCIONÁRIO

Gostaria de escolher um modelo, senhor?

CAIO

Tanto faz. Me dê algo que não pareça vagabundo, senão a Lucinha vai ficar envergonhada diante das amigas.

FUNCIONÁRIO

Temos esse modelo de mortuária sextavada envernizada superluxo.

CAIO

(observando o caixão com olhos distantes) Sim, e quanto custa?

FUNCIONÁRIO

São quatro e mil e oitocentos, senhor.

CAIO

(despertando) Quatro o quê?

FUNCIONÁRIO

Quatro mil e oitocentos, senhor. É uma madeira de qualidade premium.

CAIO

Pare de agir como se estivesse vendendo colchões. Embora exista uma bizarra analogia. Sabe, até alguns minutos atrás, eu achava que a televisão era a indústria mais perversa que existia. Mas há coisas piores. Essa porcaria de compensado não deve custar mais de trezentos e cinquenta. Acrescentando a mão de obra de ignorantes mortos de fome e mais o salário da Ivonir, não passaria de quinhentos.

Com essa sinceridade monstruosa é que Caio vai tratando sobre tudo.

Para completar, ficamos sabendo que Caio é um professor universitário e, aparentemente, frustrado por não ter conseguido emplacar o seu livro, que “coincidentemente” é uma peça de teatro, assim como o livro de Rodrigo Rosp. E um dos momentos da vida perpassado por ele é aquele em que diante de Mércio – um escritor que se entregou ao mercado apenas para ter livros e mais livros vendidos ­– e de Tati, moça a qual ele já deu em cima sete vezes, recua quando pressionado para que explique sobre o assunto tratado em seu livro.

Mas a estrutura da comédia não pode deixar Caio recuar demais. Ele é aquele que sempre avança contra todos os pontos estabelecidos pela moral e bons costumes, até mesmo contra o sistema empregado pela morte, por São Pedro, por Deus! Caio resolve então explicar aos dois, Tati e Mércio, porque transformou Hamlet em praticamente uma comédia, fazendo de Hamlet um travesti.

CAIO

(coçando a cabeça) Bem, eu quis brincar com a dualidade do personagem, que, entre tantas incertezas, talvez tivesse dúvida sobre o próprio sexo. (vendo que os dois o observam sem reação alguma) Ei, ele tinha uma mãe castradora e uma figura paterna que era um verdadeiro fantasma. Existe margem para uma série de interpretações, não acham?

Após a explicação, Mércio e Tati o repreendem. Caio parece, em outras palavras, querer falar pelo autor, tentando deixar claro que até mesmo Hamlet é um fingidor. Que fingimos, talvez, sempre.

Falar de todo o fingimento que pode ser relacionado conosco é inútil. Sabemos o quanto podemos ser e somos Fingidores. O quanto enganamos e nos enganamos quando necessário. Fingir é uma das melhores armas do ser humano. E todo esse fingir é representado na obra de Rodrigo Rosp, ou não. Talvez seja apenas um fingimento para que continuemos a acreditar que somos pessoas sinceras, honestas e que não devemos realizar caricaturas de nossa sociedade.

Foto: Mari Lopes
Rosp consegue ao longo da obra nos aproximar cada vez mais do personagem Caio. Parece que o conhecemos como os nossos melhores amigos. Lendo a história de vida, às parcelas, de Caio, percebi que o livro Fingidores tem uma progressão. E acredito que essa progressão é fundamental para que possamos tanto entender toda a história como para compreender que a leitura atenta e paciente é importante para analisarmos a escrita de um autor e sua obra. 

A partir da progressão da vida de Caio pude identificar que a comédia de Rosp cresce vertiginosamente e nos leva até o último ato rindo e esperando que a morte ou a vida não chegue. Ficamos sem acreditar como Caio teve a ousadia de ter desavenças com um santo. Eu não podia imaginar essa comédia que me fizesse chegar ao final do livro e após uma pergunta me fizesse virar a página e querer chorar de tristeza por não haver mais nada para ler e rir.

CAIO

De novo?