A crítica negativa
A expedição portuguesa, sob a ótica renascentista, explorou as águas e a terra da “Índia” orientada não pela surpresa diante do maravilhoso (o indescoberto-descoberto, o oculto, o outro), mas pela via da observação científica, segundo os interesses da coroa e da burguesia lusitana. Assim, quando a nau de Pedro Álvares Cabral tocou a terra desconhecida, o cronista Pero Vaz de Caminha relatou o que seus olhos contemplaram e o que sua mente renascentista compreendeu. Dentro de um olhar histórico (apegado aos fatos) e não sob um estranhamento do real (condição para o maravilhoso), a crônica de Caminha se estrutura. Esta, que pode ser afirmada como a primeira obra literária luso-brasileira, é composta a partir da positividade, i.e., da constatação do real como sendo aquilo que é percebido – o real em sua nudez. A visão objetiva penetra a língua, alcança à semântica, influencia a sintaxe e reinventa a estilística. O primeiro pecado passou de um homem a todos os homens, e todos como ele, pecaram.O pecado é a objetividade.
Embora, no séc. XVIII, não existisse ainda a corrente filosófica do positivismo, pode-se afirmar com certa tranquilidade, que a crônica de Pero Vaz Caminha é um texto positivista. O positivismo já se encontrava na língua portuguesa, nas mercancias, nos portos, nas naus, entre os marinheiros e os comerciantes, entre a classe culta e dominante, e a plebe. Mas, neste momento, o positivismo sai de uma língua para entrar em outra. Ou seja, a objetividade moldou a língua brasileira, e, por sua vez, moldou o pensamento, em seguida, moldou a literatura.
De lá para cá, autores brasileiros vêm publicando obras sob o arquétipo do realismo, reproduzindo a natureza e seus elementos díspares, como a sociedade em narrativas fiéis aos olhos ou ao ego (ainda sim, fiéis). Esta literatura realista, não está livre, porém, permanece presa, acorrentada ao jugo de uma língua metropolitana. Autores como Machado de Assis e Murilo Rubião, são exceções à regra. A literatura está doente, sua doença é a objetividade. Não há – ainda que muitos afirmem – uma literatura bizarra que combine o maravilhoso ao realismo urbano. Há uma literatura indefinida, adoecida pela visão histórica dos fatos. Esta língua não se permitiu a renovação pela escolha de um curso diferente às suas letras, um curso que absorvesse o fantástico como característico de terras sul-americanas; ao contrário, absorveu uma linha cientifica que busca a perfeição da forma ou a adequação do objeto ao arquétipo. Afirmo, a literatura está doente, e muito mais a crítica, a língua é sua raiz, e a raiz está podre.
Presencia-se uma crítica literária que valoriza as literaturas urbanísticas e de periferia – centrais ou descentralizadas –, que se apossam do real positivamente. Há, entretanto, autores que escolheram a via negativa da língua, buscando no real a surpresa do maravilhoso; são poucos, contudo, significativos neste momento de aburguesamento literário. Aburguesamento ou alta classe, assim pode-se nomear o movimento da crítica cuja característica principal é eleger os escritores que estão, a seu ver, representando a língua, oficializando as representações por meio de uma linguagem conativa (função linguística muito em voga nos jornais). A partir do aburguesamento a outra classe é marginalizada (outra forma de classificação, porém, de teor depreciativo); alguns escritores, no entanto, satisfazem-se com a margem e a tornam sua bandeira, sem perceber que com isso apóiam o movimento positivista da crítica literária.
Pede-se uma revisão da crítica, um movimento inverso na língua, uma crítica negativa, que aceite e procure compreender o maravilhoso como outra forma de visão do real. Pede-se uma literatura que rasgue as vestes da objetividade e aceite a subjetividade, que veja no real a sua face mágica, que abandone o realismo e invente outra realidade.
Enquanto a literatura e a crítica estiverem sob o jugo positivista, enquanto a realidade não surpreender, mas apenas for um meio de reflexão sob a condição do homem, reflexão cientifica e filosófica; a literatura permanecerá doente e com ela a língua que a constitui.
Até lá, espero o dia em que um escritor olhe o mundo e diga “Ah!”, ao invés de “Eis aí, algo para se analisar”.
por Anderson Fonseca