11 de julho de 2013

Vivendo ancorado na vida submarina


Às vezes, e muito dificilmente isso ocorre, encontro um livro que tenho a vontade de deixar a leitura esperando. Explico. Quando inicio um primeiro parágrafo ou um primeiro verso de um livro, e sinto que ele me trouxe algo significativo, desde aquele instante me ponho em pé de guerra e percebo que nem tão cedo irei querer findar o livro.
Felizmente, pela quarta vez este ano, fui premiado com mais um desses livros que nos impedem a leitura ao mesmo tempo em que nos levam adiante, como se estivéssemos sobre um barco de papel, que boia, para trás e para frente, vagarosamente, sobre todo o oceano. E quando isso ocorre com um livro de poemas é porque as imagens ali inventadas nos fizeram esquecer todo o resto e nos importamos apenas com as palavras que acabam por criar novas imagens.
Foi lendo os poemas da mineira Ana Martins Marques que me vi preso, pela primeira vez, ao que poderia ser um’A vida submarina. Ao ler o primeiro poema, Âncora, já finquei, definitivamente, os pensamentos em seu livro:
O sol percorre
toda a extensão de um muro
Riscos na paisagem
Escrita a lápis
A rua começa desde a escrita –
Esta em que te sigo
Este poema é uma âncora;
é para que você fique sempre aqui
Mas fogem as horas sem carícias
horas que são como um tanque de peixes sem peixes
A minha mão cobre a sua
com sua sombra
Este poema, pesado, afunda (Âncora, p.13)
Publicado em 2009, o livro de Ana, é dos livros que não se pode ter em casa. Deve-se, ao terminá-lo, encontrar um amigo e passá-lo adiante. Poesia assim, que envolve o ser e o faz devanear, não pode ficar parada na estante de uma biblioteca particular.
N’A vida submarina, podemos encontrar o que chamo de ‘livros’. Cada qual com suas características, mas que não deixam de se relacionar uns com os outros. Parece que tudo foi feito de uma maneira para que se criasse uma ‘teia submersa’ e fosse possível compreender a solidão desse eu-lírico, que se perde no ato da escritura. Esses livros que compõem um só são Barcos de papelArquitetura de interioresA outra noite; Diário (verão 2007)Episteme & epidermeExercícios para a noite o diaCaderno de caligrafia e A vida submarina.

Ana Martins Marques, que já foi vencedora de prêmios literários, possui o entendimento da linguagem coloquial, aproximando assim até mesmo o leitor que não tem certo apreço pela poesia. Cria, a partir daí, um eu-lírico que aparenta ser vários, mas que entendo ser apenas um; e que vai estar refletido nas várias ‘estórias’ que vão se formando ao longo dos poemas, fazendo-nos sorrir, como se estivéssemos, de certa forma, voltado à infância. Tal delicadeza encontrada em certos poemas chega a se transformar em uma profundidade reflexiva, como se vê na composição de Aquário que traz um olhar aguçado de criança em perceber a tristeza dos peixes presos em um aquário, e que ao mesmo tempo traz algo do eu-lírico na representação do peixe:
Os peixes são tristes no aquário
mesmo que não conheçam o mar
alguma coisa neles quer o amplo
No poema
morrem sem água
na primeira estrofe (Aquário, p19)
É certo que, em algum momento, o leitor discordará do que digo e dirá que já pensou nos animas que vivem enjaulados ou engaiolados, e que já puderam perceber a melancolia e a tristeza que esses mostram. Mas, ao meu entender, Ana Martins vai além por criar um eu-lírico que se põe no lugar do peixe e tenta mostrar ao indivíduo que o observa o quanto a realidade é transparente, cheia de mazelas e infortúnios, mas que muitas vezes não vemos ou fingimos não ver. Essa transparência é a própria realidade que vivemos e que cremos ser a melhor possível. Na verdade, estamos mortos, sobrevivendo sem prazer algum, morremos “na primeira estrofe”, no primeiro suspiro.
Há, por todo o livro, como não poderia deixar de ser quando nos deparamos com as profundezas de um oceano, uma presença do refletir poético, de como a poesia pode estar presente em nosso mundo e como ela pode mexer conosco. Como se pode perceber no poema Margem:
No final da página
como no final do mundo antigo
há um despenhadeiro
Embora os que leem prosa em geral
se arrisquem mais
porque chegam quase à beira do abismo
cuidado ao chegar à borda do poema. (Margem, p.15)
Chegar à borda do poema é perigoso, pois o indivíduo, acostumado com sua realidade, pode se deixar levar pelo mundo imagético da poesia, e isso, para alguns, que fingem viver uma realidade prazerosa (que não percebem a falta de transparência do aquário em que vivem), é como se realmente perdessem o chão, como se caíssem num “buraco sem fim”, como Alice um dia chegou a cair, imaginando um novo mundo, uma nova realidade para si.
A partir de A outra noite, o elemento amoroso dá o seu ar da graça e percorre a poesia de Ana Martins Marques como uma Batata quente, aqui e ali irá aparecer de forma a mostrar que sem isso o sujeito se perde nesse mundo (mal) idealizado.
Se eu te entregasse agora o meu amor
aceso como ele está,
como ele está, pesado, você o trocaria rapidamente de mão,
você o guardaria um pouco na esquerda,
um pouco na direita,
por quanto tempo antes de o passar adiante? 
(Batata quente, p.43)
Há, porém, momentos em que esse amor nada mais é do que Migalhas,


Entre a toalha branca e um bule de café
seria inapropriado dizer
que eu não te amo mais.
Era necessário algo mais solene,
Um jardim japonês
Para as perdas pensadas,
Um noturno de tempestade
Para arrebentar de dor,
Uma praia de pedras para chorar
em silêncio, uma cama alta
para o incenso da despedida,
uma janela
dando para o abismo.
No entanto você abaixa os olhos
e recolhe lentamente as migalhas de pão
sobre a mesa posta para dois. (p.102)
E assim, vamos percebendo que vasculhar os poemas de Ana nada mais é do que um Rito para nos encontrarmos. Procuramos nos poemas nossas histórias não vividas, o que não nos pertence, para tentar encontrar uma possível salvação desse mundo que nos prende. Dessa maneira o eu-lírico, que vagueia na poesia, e se perde, acaba se percebendo no peixe, preso numa realidade que o faz sofrer.
Como se a conhecesse de cor
repito com as mãos a curva das tuas costas
(teu corpo te veste lindamente)
Vasculho teu corpo até encontrar
algo que do meu corpo
eu não sei
Ignoramos porém
o nome das coisas que trocamos (Rito,p.53)
E de certa maneira ninguém pode “testemunhar” essa troca, que se dá a partir de nossa leitura. Essa leitura que adentra os nossos sentimentos e que podemos sentir em toda nossa Episteme & epiderme.
Nesse ‘livro’, a noite aparece e mostra que a Insônia se faz presente nas noites de escrita, rodeadas de ninguém: “Regressas para a espera e para a escrita | como em todas as noites sem ninguém” (Insônia, p.78). Mas são nesses momentos tristes do ofício da escritura que os Relâmpagos surgem, tramando o caminho certo que faz a poeta atingir “muitas coisas rápidas, precisas, | por alguns instantes” (Relâmpagos, p.102).
E, talvez, tenha sido nesses instantes que o eu-lírico se viu lembrando os poemas clássicos de Homero, uma vez que a presença de Penélope surge para nos contar que os dias são sempre melhores que as noites, em apenas dois curtos versos.
De dia dedais.
Na noite ninguém. (Penélope III)
E assim, feito um O lutador, o leitor vai chegando ao final do livro, sentindo o que as noites de insônia trouxeram ao eu-lírico, enquanto tentava escrever:
Atingidas em combate
as palavras oferecem
sua outra face.
São poucas,
eu muitos.
Da luta vã
resta a manhã. (O lutador, p.119)
E tudo isso tem que acabar por desaguar entre corais, pois já não há mais lugar para o que o eu-lírico sente na pele, essa dor da escrita. Acaba por achar que tem que se ver refletido como o peixe, atordoado, perdido, sem liberdade no aquário. Resolve, então, viver uma vida marinha, “inventando amor, de amplas janelas, sobre o mar sem praias” (Marinha, p.130). Daí, o silêncio que existia será levado junto para a vida que escolheu, A vida submarina. Calar-se-á diante de seu próprio alheamento e na recusa de viver como se pudesse sentir prazer nos afazeres do dia a dia. E tudo isso, talvez, por haver a falta do sono, a falta da confluência com as palavras, em perceber que a sua liberdade só pode ser adquirida quando estiver não mais habituada aos abismos da poesia e da realidade. Isolar-se-á feito os corais, porém será permeado pelos poemas-peixes que deixou para trás.
Eu precisava te dizer.
Tenho quase trinta anos
e uma vida marítima, que não vês,
que não se pode contar.
Começa assim: foi engendrada na espuma,
como uma Vênus ainda sem beleza,
sobre a apele nasciam os corais,
pele de baleia, calcária e dura.
Ou assim: a luz marítima trabalha lentamente,
os peixes começam a consumir por dentro
o sal do desejo,
estão habituados ao sal.
Quando vês, a água inundou os pulmões,
neles crescem algas íntimas,
os olhos volta-se para dentro,
para o sono infinito do mar.
As mãos se movem num ritmo submerso,
os pensamentos guiam-se pela noite
do Oceano, um anoite maior que a noite.
Tenho quase trinta anos e uma vida antiga
anterior a mim.
Daí meu silêncio, daí meu alheamento,
daí minha recusa da promessa desse dia que você me oferece,
esse dia que é como uma cama
que se oferece ao peixe
(você não haveria de querer
um peixe em sua cama).
Quem atribuiria ao mar
a culpa pela solidão dos corais
pelas vidas imperfeitas
dos peixes habituados ao abismo,
monstros quietos
só de sal e silêncio e sono?
Eu precisava te dizer,
enquanto as palavras ainda resistem,
antes de se tornarem moluscos
nas espinhas da noite,
antes de se perderem de vez
no esplendor da vida
submarina. (A vida submarina, p.136)