4 de julho de 2013

Os bárbaros estão à espreita


por Madjer de Souza Pontes

Os desmandos do Poder em nome da Ordem. A Ordem estabelecida através dos regimentos do Poder abusivo. O Poder e a Ordem, sintagma nomeador de alguns processos dominadores, como o controle das massas, o domínio de indivíduos, o império sobre determinados povos.



 A leitura de À Espera dos Bárbaros, do sul-africano J. M. Coetzee, nos provoca uma sensação de mal-estar da impotência. A injustiça paira sobre os indivíduos dominados, pois a Justiça apenas é apreendida pela comprovação experimentada da Injustiça. O romancista, com sua prosa econômica, porém complexa, constrói quase uma alegoria para fundamentar sua concepção acerca da violência provocada pelo Poder que busca, acima de tudo, estabelecer a Ordem; desenvolve em seu texto que não há como expressar qualquer forma de revolta diante da tortura, apenas uma revolta silenciosa.

À Espera dos Bárbaros é uma daquelas obras que nos perturbam pelo oblíquo jogo entre beleza e brutalidade. As descrições sem máscaras exibem a miséria humana no que ela tem de mais pungente e cruel. As implicações da dominação através de um Poder desmedido, dos usos e abusos pessoais e políticos (de alguns personagens representantes do “Império”) e da tirania étnica, que visa à higienização em nome da Ordem, não se instituem apenas na realidade objetiva da obra, mas incidem em nossa interioridade, justamente no ponto em que os problemas de comunicação entre indivíduos e estado se fundamentam, ou seja, a realidade da tortura, não só física, conquanto ideológica, da brutalidade e da injustiça de regimes autoritários ou pseudodemocráticos que usurpam a voz dos indivíduos e os oprimem em nome do Progresso e da Ordem.

Coetzee não tem como finalidade focalizar, com tons realistas, as problemáticas surgidas da instituição do ‘apartheid’, até mesmo por que o romancista constrói quase uma alegoria que representa um “Império” que intenta controlar e punir os “Bárbaros”, pois é assim que os conhecemos. Não nos é informado qual sua etnia, em que ponto geográfico do mundo a estória se passa, no entanto são “Bárbaros”, a única certeza que temos. Contudo, apesar desta designação, Coetzee procura humanizá-los, preenchê-los de substância e, posto que evitam o avanço da civilização, ao defenderem suas terras, o “Império” utiliza de seu Poder desmedidamente para, ao longo da narrativa, transformarem-se no que mais rejeitavam, semelhante a antiga máxima, de acordo com as palavras de  Horácio: 

A Grécia conquistada conquistou por sua vez seu selvagem vencedor 
e trouxe a civilização ao rude Lácio”.

É na longínqua fronteira de um “Império”, não nomeado, que cumpre a um Magistrado os deveres que lhe cabem por desígnios superiores. "Magistrado" é só assim que também o conhecemos. Apenas o que importa é sua função, mas suas ações e sentimentos destoam e sua posição na hierarquia da barbárie o envolve na Roda Viva do Poder e da Ordem: um membro do “Império” sendo higienizado. 

Eu não queria me envolver nisso. Sou apenas um magistrado da roça, um funcionário responsável a serviço do Império, servindo meus dias nesta fronteira preguiçosa, esperando para me aposentar. Recolho o dízimo, os impostos, administro as terras comunais, cuido de que não falte nada para a guarnição, supervisiono os funcionários que temos aqui, fico de olho no comércio, presido o tribunal duas vezes por semana. De resto, vejo o sol nascer e se pôr, como e durmo e estou contente. Quando morrer, espero merecer três linhas em letra miúda na gazeta imperial. Não pedi nada mais que uma vida tranquila em tempos tranquilos.
Mas no ano passado começaram a nos chegar da capital histórias de inquietação entre os bárbaros...

É a partir dessa inquietação que logo no início do romance entramos em contato com a desumanização pela guerra e pelo ódio étnico. E logo quando o Magistrado, com uma mistura de lavagem cerebral e ingenuidade, crê que os “Bárbaros” feitos reféns, ainda sob sua supervisão, estão sendo torturados, pois não colaboraram oferecendo informações favoráveis a seus "interrogadores". O Magistrado tem aversão aos métodos usados pelas “autoridades” e, quando sua atitude em relação a estes e às políticas do “Império”, ao qual consagrou grande parte de sua vida, se modificam, já é tarde demais. Ele já não passa de um farrapo humano, evitado e ridicularizado pelos que o cercam.


Um pouco mais sobre o autor:

Coetzee nasceu na Cidade do Cabo em 1940. Trabalhou como programador de computadores na Inglaterra, entre 1962 e 1965, enquanto fazia pesquisas para sua tese sobre o novelista inglês Ford Madox Ford. Em 1965, mudou-se para os Estados Unidos, onde estudou em inglês, linguística e línguas e dialetos alemães na Universidade do Texas. 

Entre os livros escritos pelo sul-africano estão "Dusklands", de 1974, "No Coração do País", de 1977, com o qual ganhou o principal prêmio literário de seu país, o CNA Prize. Em 1983, publicou "Life & Times of Michael K" e em 1999, "Disgrace".