Por António Carinha
10 de junho de 2013
O dia dos prodígios, ou o realismo perfeito, de Lídia Jorge
Um personagem levantou-se e disse. Isto é uma história. E eu disse. Sim. É uma história. Por isso podem ficar tranquilos nos seus postos. A todos atribuirei os eventos previstos, sem que nada sobrevenha de definitivamente grave. Outro ainda disse. E falamos todos ao mesmo tempo. E eu disse. Seria bom para que ficasse bem claro o desentendimento. Mas será mais eloquente. Para os que creem nas palavras. Que se entenda o que cada um diz. Entrem devagar. Enquanto um pensa, fala e se move, aguardem os outros a sua vez. O breve tempo de uma demonstração.
Depois do preâmbulo, apresentado por um narrador que a revolução trouxe para ouvir as pessoas, é nomeada a primeira habitante da aldeia. Com «Carminha parecia fazer adeus, mas apenas lavava janelas», Lídia Jorge inicia um fio condutor a toda a história: em Vilamaninhos, as parecenças que iludem a realidade e trivialidades da vida de uma aldeia podem ser elevadas à condição de acontecimento invulgar, mágico. Vilamaninhos é uma pequena aldeia no sul de Portugal, mas poderia ser de qualquer outro país. A posição no planeta pouco interessa; apenas o ser pequena é condição importante.
Tal como em O Físico Prodigioso, de Jorge de Sena, o romance de Lídia Jorge apresenta alguns trechos paralelos. Ainda que tenha sido pedido às pessoas para que não falassem todas ao mesmo tempo. Fica, pois, claro que todas gostam de falar. A obra é, aliás, falada. A sua singular oralidade está assente numa construção textual não convencional.
A morte de uma cobra (ou a convicção de que estaria morta) é o mote para os intervenientes desfiarem as suas histórias, as suas opiniões, as suas discordâncias. Num ponto parecem estar de acordo: «A cobra fez duas roscas à volta da cana, saiu dela, e voando por cima dos nossos chapéus e dos nossos lenços, desapareceu no ar. Voou no ar. No ar como se fosse uma avezinha de pena.»
Jesuína Palha é das que mais gostam de contar a história, até porque foi ela quem tudo fez para matar a cobra. Mas nem sempre consegue a atenção dos outros habitantes que, por vezes, preferem combater o silêncio de outra maneira:
Quando Jesuína Palha acabou de falar, parecia ainda estar disposta a recomeçar. Via-se isso pelo cuspo dos lábios. Mas havia o som dos passos dos vizinhos que já voltavam as costas e desciam o lajedo da rampa. Como cascos de cavalo da guarda. Os rabos andando de lado a lado a enxotar o silêncio. E o freio desatado sob as trombas.
Sem nunca referir 25 de Abril de 1974, é a ele que Lídia Jorge dirige o leitor que conhece os acontecimentos dessa quinta-feira que acabou com o regime ditatorial em Portugal. No entanto, não é necessário saber que esta revolução foi feita com flores e sem tiros para perceber o sentido do relato que diferentes personagens vão fazendo. Esta revolução poderia ter sido feita em qualquer tempo e em qualquer lugar. Alguma crítica tem insistido em salientar como uma das características marcantes da obra a alienação de uma comunidade oprimida e inculta, consequência de um isolamento próprio da ditadura. Esta é uma análise descuidada. Alienadas são as suas pessoas individualmente, ou seja, o que O Dia dos Prodígios apresenta não é uma aldeia antropomórfica mas, antes, seres que tecem as suas vidas e a vida dos outros conforme as suas fragilidades como seres únicos.
Diferentes personagens desfilam na história ao ritmo das línguas viperinas dos vizinhos. De José Jorge Júnior que «contava oitenta e sete anos e vinha do outro século» se falava que a perna «já era de madeira, sem cheiro a seiva onde apetecesse picar». Da mulher deste, que «quando tentava erguer-se sobre a pá do seu assento, abanava a cabeça dizendo que não. Que não podia. Que mais doce.»
José Jorge Júnior vai contando como «Jorge» chegou até si e Esperancinha desfia os filhos que foi tendo, lembrando várias vezes o morto: «O morto veio entre o Duarte e o Simão. O morto.»
Enquanto isso, José Pássaro Volante é apresentado.
Depois José Pássaro Volante. O que tem três certezas. Sabe que a terra não é redonda, mas o horizonte um círculo abobadado de azul e cinza, conforme a hora do dia e o mês do ano. Que se desloca atrás de si e das bestas para onde quer que vá. Suba e desça o barrocal, penetre a serra, monte abaixo monte acima, pernoite nas pensões à beira da estrada. Durma nas abas das medronheiras. Que o círculo é sempre um círculo de terra e ar. Como o redondel dum copo virado, atrás do ser da pessoa. Por cima os astros, por baixo o pó e as pedras, e o mesmo redondo atrás, atrás, ele no meio. Ah prisioneiro. Quem uma vez não saiu de Vilamaninhos não conheceu nem conhecerá a realidade da terra.
A suposta visão universalista do mundo é, pois, reduzida à sua visão imediata, o que fica confirmado quando se verifica que a sua casa se localiza no centro de Vilamaninhos e « no centro da casa fica a mulher bordando» e no meio desta fica «a colcha de linho cru, adamascado», no centro da qual se situa «uma figura de escamas bordadas. E a língua».
O mundo de Pássaro Volante, que não é redondo, tem o seu centro no centro da colcha de linho cru. Mas no centro, centro, a figura de escamas bordadas tem uma língua de «sedas vermelhas, reluzentes de fogo». O mundo à volta do imaginário. O imaginário com língua. A cada momento apraz dizer que esta obra é universal e intemporal. O imaginário e o mundo reduzido a um pequeno símbolo persistem para além de revoluções e as pequenas aldeias são também os bairros, a rua, a universidade, o grupo de amigos. Também por isso, esta é uma história de pessoas mais do que de comunidade, embora só nesta aquelas se realizem. O apelo ao espírito comunitário é, contudo, feito.
Depois Manuel Gertrudes. Macário, que se estivesse acordado cantaria quadras à cobra. Matilde. João Martins. Carminha. José Maria, o cantoneiro, que preferia quadras de amor. Maria Rebôla, que respondeu às preferências do cantoneiro chamando-o de herege: «Você é um herege, porque não respeita os sinais. Quem julga que uma coisa destas pode acontecer por nada?».
A cobra. Lourenço previu que fossem todos passar «a noite ao relento sem pregar um olho». Manuel Gertrudes apelou à união de todos: «Agora mais do que nunca é preciso sermos amigos, amarmo-nos uns aos outros, fazer uma frente comum». O medo a comandar a decisão e até o bom senso. Tão religioso. Tão humano. Divinal.
Carminha Rosa e sua filha, Carminha Parda, viviam estigmatizadas pelo passado. A primeira pela relação que mantivera com o padre. A segunda, por ser filha dessa relação. A passagem onde se fala destas vidas e onde se diz que «dizem que disse» e que o «padre dum cabrão» enganou a moça é um monumento à condição espiritual de muita gente, principalmente dos que pecam por palavras. Tão religioso. Tão humano. Divinal.
Tem de se dizer que «a decrepitude de José Jorge Júnior foi publicamente reconhecida». O próprio o admitiu: «Nada é proibido contra a minha pessoa», disse, alvitrando tristes espetáculos enquanto fala num hipotético «mijar na cama e montar galinhas».
A cobra. Jesuína Palha sonha com a glória futura e imagina excursões para Faro e Portimão, com escala na terra e alguém a dizer que foi naquele local que ela própria matara um animal muito feroz e que «nem homem, nem mancebo conseguiu jamais fazer o que fez essa mulher valente». Já Branca apenas espera «acordar um dia sem sentir o peso do corpo, nem dos ossos, nem das miudezas do ventre». Macário deseja uma mulher que lhe chame «querido». Fala-se que «ainda ontem Pássaro procurava a mulher na cama, e ela vá de se fazer de morta».
Um homem que aparece na terra, e que ninguém conhece, não tem a importância da cobra que ganhou asas mas contribui para a vida mágica e imaginosa de Vilamaninhos. Será «algum emigrante vindo da Argentina pra vender a casa do pai». Todos os que souberam saíram à rua. O que desejaria este de Carminha, que «abre a porta a qualquer um»?
O romance de Lídia Jorge, tão recheado de silêncios, como de palavras soltas, frases ditas e passagens inesquecíveis, é profundamente marcante. Tão marcante que parece, ao mesmo tempo, poder abdicar de qualquer uma das suas frases, sem que de nenhuma destas se possa pensar que está ali por mera distração da escritora, ou qualquer outro acaso.
É o romance de Lídia Jorge, obrigatório para quem gosta de boa literatura, um exemplo claro do que se convencionou chamar de realismo mágico? A resposta pode ser um talvez. Talvez pressupõe sim e não. Talvez sim, talvez não. Mágica é a escrita da autora. O que O Dia dos Prodígios é, de certeza, é um exemplar de realismo puro e duro. Se as classificações não chocarem, que se atribua, então, magia ao realismo da autora.
O romance termina com os lamentos de Matilde e o apelo de Macário para que se ouça música:
E Matilde disse. Desde o ano passado que me partiram nesta venda cinco copos de três, três copos de quartilho e dez de meios. Só havi disso tudo, trinta e cinco mil réis. Mas quem deve, tem o nome escrito naquele papel da parede. E Macário disse. Oh gente. Ouçam aqui o dó.
Tão musical. Tão mágico. Tão perfeito.