Por Nathan Matos
17 de maio de 2013
O alámo e o baóba de Zambra
Estremeci quando li o último parágrafo do livro de poucas páginas de capa bonita onde vinha escrito A vida privada das árvores. Mal sabia eu do que se tratava o livro, pois as sinopses não me são bem vindas. Vez por outra resolvo ler um livro que ainda não ouvi falar ou que não sei a história. Isso me faz gostar ainda mais da escuridão que todo livro guarda.
E foi assim que iniciei a leitura da mais nova publicação, editada pela Cosac Naify, de Alejandro Zambra. Com sua escrita solitária, com um narrador solitário, conta-nos a história da vida privada das árvores, ou seria a história de Daniela?
O futuro é a história de Daniela.
O título é sobre a vida das árvores porque “Julián sabe mais de árvores que de países”, talvez por criar mundos ou por tentar criá-los. Talvez o título seja aquele porque Julián inventou o relacionamento entre o álamo e o baobá para colocar Daniela para dormir. Talvez tenha sido porque desejava ser escritor, não professor de literatura. E literatura era do que não gostava Daniela, apesar de ter lido, quando mais velha, o livro de Julián. Ou será que nada disso aconteceu e foi apenas o futuro da vida de Daniela escrito por Julián que acabamos imaginando por conta das ilusões do narrador?
É nesse ínterim de ações que ficamos, em certos momentos, ‘perdidos’ na narração de A vida privada das árvores, do autor chileno Alejandro Zambra. Mais uma vez, como em Bonsai, o narrador inicia a história nos alertando, deixando-nos apreensivos sobre o que trata a história.
Adiante, a história se dispersa e quase não há maneira de continuá-la, mas, por ora, Julián consegue um certo distanciamento...
E nessa dispersão ficamos sabendo que Julián não tem mais uma namorada, que o chamou de filho da puta e que o expulsou de casa. Ficamos sabendo que por ter feito uma encomenda se ‘apaixonou’ por Verónica, que não mais voltará, mas porque talvez esteja presa numa avenida trocando o pneu do carro, ou porque talvez esteja transando com outro homem. O que se sabe é que Verónica e Julián transavam no quarto branco, e que Daniela vivia no azul, que Julián não era feliz com o que podia ser e Daniela queria ouvir mais sobre a vida privada das árvores.
Era, diz o baobá, uma mulher de braços compridíssimos. No começo pensei que fosse uma menina, porque estava usando aparelho, mas não era uma menina, e sim uma mulher de braços muito compridos, que quase tocavam o chão. Uma mulher não necessariamente bonita, mas bastante esquisita: olhos verdes, cabelo curto e branco, pele escura, e um grande aparelho nos dentes, e aqueles braços compridos que quase tocavam o chão. Era ou tinha sido pintora, e se chamava Otoko.
O interessante em A vida privada das árvores é como Zambra, aos poucos, vai inserindo o padrasto na vida de Daniela e de que maneira se dá a aceitação da menina, com pouco mais de cinco anos, por Julián. A relação estabelecida entre eles é narrada de uma maneira que o leitor é levado a se perder. Há momentos, como quando o narrador diz que Julián escreveria o futuro de Daniela, que chegamos a nos perder entre realidade e ficção, entre presente e passado. Não sabemos se Daniela teve ou não teve uma conversa com seu pai, se levou ou não seus namorados até a ponte, se leu ou não leu o livro de Julián.
Julián é uma mancha que se apaga e some.
Verónica é uma mancha que se apaga e some.
O futuro é a história de Daniela.
E Julián imagina, escreve essa história, esse dia futuro: o cenário é o mesmo, Daniela continua vivendo no mesmo apartamento de agora, de então, foi reformado há pouco tempo – as paredes já não são verdes, azuis e brancas, mas tem coisas que, apesar dos anos, permaneceram intactas: Daniela sabe onde encontrar o chá, a torradeira, os alfinetes, a lanterna, a roupa de verão. Já não há tapetes sujos nem vidros trincados. Já não há aranhas, nem baratas, nem formigas. Daniela ocupa o quarto de sempre, o quarto azul, e no quarto branco estão os livros e os discos – o quarto de hóspedes agora é, com propriedade, um quarto de hóspedes: quase todas as suas amigas moraram ali depois de sair de casa ou perder o emprego.
E nesse torvelinho de imagens, de cenas que vão se criando, a partir do que Julián deseja para Daniela, o que se sabe é que ambos estão juntos, que ambos, mesmo em suas solidões, estão unidos. Mas nada disso é contado, tudo está na criação da nossa mente. Tudo fica ao nosso encargo.
Quando Julián percebe que já está tarde, que Verónica ainda não voltou da aula de desenho, começa a imaginar que ela pode estar com problemas ou traindo-o. Resolve, então, colocar Daniela pra dormir, e depois se dá conta que já são duas e meia da manhã e que Verónica ainda não chegara.
Acaba de dar uma série inútil de telefonemas que só aumentaram seu desespero. Julián anda pela casa arqueando os dedos nos sapatos, forçando as pisadas, como se caminhasse por um capo semeado de flores ou de explosivos. No quarto da menina um relógio em forma de Bob Esponja marca duas horas e meia da manhã. Deve ser a primeira vez que alguém olha para esse relógio às duas e meia da manhã, pensa Julián, como se essa ligeira certeza amenizasse a espera.
E nesse passar do tempo, o narrador, sempre ‘interrompendo’ a história, nos deixa a par do que vai acontecer, porque sabe que o que vai acontecer realmente não importa:
O romance continua, embora só para render-se ao capricho de uma regra injusta: Verónica não chega.
O cuidar de Daniela é que importa, nada mais. Às quatro da manhã é que Julián começa a imaginar que Verónica pode ter lhe deixado, lhe trocado por outro homem que lhe dê mais carinho e atenção, ou que a trate como uma cadela, como ele resolve imaginar; mas logo deixa isso de lado e remexe a memória para fugir desses pensamentos, porém “A memória não é nenhum refúgio”.
O álamo e o baobá, personagens das histórias de dormir, criadas por Julián e contadas à Daniela, são, talvez, a representação desses dois personagens que fundamentam o livro. Karla, Verónica e os dois amigos de Julián não importam para a narrativa. Ou melhor, importam, para compor a paisagem vista pelo álamo e pelo baobá.
Mais uma vez Zambra nos submete às relações vividas entre duas pessoas. Relação essa que mantêm uma solidão, não daquelas profundas que pode levar à depressão, mas aquela solidão que todo e qualquer ser humano possui. Somos invadidos por essa solidão naqueles dias em que nada mais importa, em que parecemos estar cansado do mundo, quando na realidade estamos realizando uma reflexão de autoconhecimento. Isso é necessário para Julián, isso é o que ele faz em várias partes do livro. Fustiga a memória como se estivesse em busca de algo que pudesse comprovar a sua maneira de viver e de trazer as respostas que necessita ter e é aí que mora Daniela, como se fosse uma âncora da realidade de Julián.
O que mais me surpreende na escrita de Zambra é que tudo é de fácil compreensão, principalmente pela sua maneira de lidar com o leitor. Parece que o narrador se sente mais à vontade conosco, até mesmo quando faz alguma piada indesejada ele se desculpa com quem ‘escuta’ a história. E isso vai fazendo a narrativa se tornar calma e serena. Ficamos lendo como se só aquela história importasse, como se só a vida de Julián e de Daniela é que fossem importantes. E com isso vamos criando raízes ao lado do álamo e do baobá, vamos ouvindo a história deles, assim como eles veem e ouvem a história de outras pessoas que os rodeiam.
E vamos chegando ao final, como se não quiséssemos largar o livro, como se não nos fosse possível viver sem a leitura. Os olhos correm pelas palavras, o entendimento anuncia um estremecimento e ficamos ansiosos ao imaginar o que vai acontecer. E o tato dos dedos nos levam a identificar que faltam apenas duas páginas para nos separarmos e ficamos ansiosos nos perguntando:
E Daniela? O que será de Daniela?