18 de abril de 2013

Cenas Domésticas




A obra de Dalton poderia ter como título “cenas da vida de província”. Isso fica bem claro no volume Morte na praça (1964 – 5ª. edição: Record, 1979), que fornece uma visão de acontecimentos circunscritos a uma geografia populacional interiorana. Na grande maioria destes contos encontramos um ambiente de cidadezinha ou de colônia. O que revela a importância da família, desdobrado em sua correspondente mais próxima: a cidade – vista como pequeno aglomerado de vidas que mantêm uma interdependência quase doméstica. Esse estreito parentesco entre burgo e família põe em cena a imagem da cidade como um clã, um ajuntamento de famílias que têm ancestrais (leia-se: valores) comuns.

Esta conotação vai servir como fio condutor da leitura do volume. Leitura que já pode ser desenvolvida a partir do primeiro conto, “Morte na praça”. O que me interessa nesse texto é a possibilidade de definição de um conceito particular de cidade e de suas implicações no conjunto da obra de Trevisan.

O conto começa com uma simetria entre a cidade e a praça: “A cidade orgulhava-se de sua praça, com igreja, hospital, farmácia, loja de armarinho, retratista, dois carros de aluguel e, no canteiro de rosas, o busto do herói”. A praça é o espaço em que se revela a organização da urbe. Melhor ainda, a praça é a própria cidade. É o seu comércio e a sua história, representada pela figura imponente do herói. Tal equivalência é confirmada pelo sentido metonímico da palavra praça: o de cidade.

A praça (em seu duplo sentido) que aparece no conto é um lugar organizado, em que todos têm uma convivência familiar. Esse equilíbrio corre o risco de ser rompido com a chegada de Jonas e sua mulher – uma ex-bailarina de cabaré. Jonas, que havia sido garimpeiro e jogador, trazia nas costas o assassinato de um homem. Ele e Anita são os elementos alienígenas que desestabilizam a sociabilidade. É significativo o fato de se instalarem, através da aquisição de uma farmácia, nas imediações da praça. Num primeiro momento, eles se ajustam à vida local. Mas, em função das ações clandestinas de Anita, que começa a receber amantes, o casal assume o seu verdadeiro sentido na pequena comunidade.

O marido passa a viver desiludidamente, aceitando a mulher e suas traições, agora públicas, e se revolta contra a praça, arrancando as flores, desrespeitando a igreja. Jonas morre e Anita continua recebendo visitas e enterrando os fetos abortados no fundo do beco. Estas são algumas das mortes na praça. Os fetos enterrados podem ser entendidos como referência simbólica à miséria que há nos subterrâneos do espaço social aparentemente imaculado.

Aqui tenho que retomar o que já ficou dito. A cidade é a família. Basta lembrar que “no verão os moradores sentavam-se em cadeiras de palhas na calçada”, ou seja, estabeleciam relações íntimas. A praça figura como casa, espaço comum da interioridade onde “os velhos coçavam o eczema no pé de grossas veias azuis”. Jonas e Anita solapam a tranquilidade desta vida e instalam nela um ponto podre: a farmácia acaba se transformando em cabaré. O universo fechado, restrito e provinciano, perde o seu aparente equilíbrio através do comportamento de Anita, que desencadeia a desestruturação das famílias tidas como ordeiras. Seu primeiro amante, Ernesto, casado, esquece no lugar do crime um relógio com o retrato da mulher. A instituição familiar fica assim exposta.

É em torno também da família que se desenvolve o conto “Começo de vida”, em que Juva, grávida, é violentada pelo filho de um comerciante. O marido acaba sabendo, mas não faz nada. O mesmo tema também aparece em “O velório”, que narra a atitude maternal de uma velha cafetina, sugestivamente chamada Mãezinha, que faz o enterro de uma de suas ex-meninas, Doralice, desgraçada por um amor não correspondido. O conto revela um universo cruel: as relações desta profana família são marcadas pela ingratidão. Uma ingratidão que transparece na atitude de um poeta que, mesmo durante o velório, tenta seduzir uma das meretrizes e acaba gastando em bebida o dinheiro que esta havia lhe dado para comprar flores para a falecida.

Também em “Entre homens”, relato de uma vingança (o filho vinga a morte do pai, matando um fazendeiro prepotente), o papel da família é central. Assim como em “Cenas domésticas”, conto em que Dalton narra o desentendimento de um casal, cuja relação é marcada pela tensão entre uma promessa remota de felicidade conjugal, só recordada pelo marido num momento de solidão, após a morte da mulher, e o inferno de um convívio marcado pela impiedade e pela desconfiança masculinas.
Todos os contos têm no relacionamento familiar o cerne de uma tensão dramática. Mesmo “Ismênia, moça donzela”, um conjunto de cartas breves e interesseiras (que se querem amorosas) de uma amante a um doutor casado, põe em debate a instituição casamento e seus problemas. Através das correspondências de Ismênia, vislumbramos sob uma oferta amorosa a venda do corpo, o que dá à mulher um valor de mercadoria – filiando-a ao mundo dos objetos.

Além desta preocupação comum a todos os textos, existe também um parentesco geográfico entre estes contos: a maioria deles se passa numa zona agrícola e rústica, reforçando assim a temática do livro anterior (as relações entre Curitiba e as colônias), com a novidade de trabalhar agora com outras amostragens das relações humanas.

Não vou comentar todos os textos, mas chamaria a atenção para “Iaiá, por que choras?”, narrativa que retrata o processo de enlouquecimento e decadência de uma moça de família tradicional. Ela, a “última de uma linhagem de heróis, o busto do avô na pracinha”, se casa com um barbeiro, escandalizando a cidade que ainda tinha na memória a grandeza perdida de seus antepassados. Iaiá morre esclerosada. Do passado áureo fica apenas o busto na praça, símbolo de um tempo morto.

Mas é “O filho pródigo” (adaptação de conto homônimo de André Gide), último texto do livro, que aglutina esta série de narrativas. Talvez este seja o principal relato do volume por esclarecer alguns significados que nos demais têm uma condição subterrânea.

O tema do filho pródigo não aparece aqui como uma referência irônica à tradição bíblica, tal como em alguns contos de Novelas nada exemplares. Antes, o filho pródigo era caracterizado por voltar das farras muito tarde. Agora há uma preocupação em resguardar o tom bíblico e o mecanismo da parábola (devido ao parentesco com o texto de Gide), mas sem deixar de explorar novas significações, inserindo-as dentro de um contexto específico. Esse reaproveitamento da parábola é revelado pela citação da fonte: São Lucas, XV, 11 a 32. É como se Dalton desejasse reformular o texto bíblico, a partir de Gide, dando-lhe um sentido outro, menos convencional.

No conto, todo dialogado, não se manifesta a interferência, por menor que seja, do narrador. Nem mesmo para dar pequenas informações para explicitar as vozes. Isto se torna dispensável porque o texto nos é familiar. Seguindo a estrutura da narrativa do autor francês, o relato de Trevisan se divide em quatro atos: “com o pai”, “com o irmão mais velho”, “com a mãe” e “com o irmão menor”. Em cada um deles se dá o confronto entre o aventureiro e um dos membros da família. O pai aceita o filho de volta, mas não entende a razão de tantas peregrinações e de tanto gasto para descobrir que o seu lugar é o seio da família. Ao irmão mais velho ele representa a perda de uma parte da herança. E mesmo a mãe, que foi quem mais sofreu com a ausência do filho, agora se dilacera com a possibilidade de sua volta incentivar a partida do caçula. Este, por sua vez, decidido a romper com o cordão umbilical, menospreza o irmão por ele ter voltado ao lar. Na verdade, o filho pródigo não consegue reocupar o seu lugar. Será mais estrangeiro do que em terras remotas e sofrerá a vergonha de não ser aceito como companheiro de viagem do caçula, que vai retomar a excursão pelas doces delícias da estrada.
           
Quero me deter em um trecho da discussão entre o filho pródigo e a mãe, que sintetiza as conotações do volume. Diz ele: “Mãe, se soubesses, o mundo é tão maior do que Curitiba”. Mas ela exige que ele ensine ao menor que “o mundo é Curitiba”. Aqui há uma nítida equivalência entre lar e cidade. Além de uma definição do provincianismo: o aqui é o centro do mundo.

O filho volta para morrer em casa. Este é também um dos sentidos da morte na praça. Seu medo acaba reiterando a potência da casa paterna com seus horizontes restritos. No entanto, a insubordinação do caçula acena com uma nova possibilidade de libertação. Um será o exilado no próprio lar. O outro percorrerá as estradas sem dono.

O pródigo, obedecendo à mãe, ainda tenta convencer o mais novo, dizendo-lhe que depois de ter viajado por todas as Curitibas não encontrou nada interessante. Mas o caçula responde que ele não descobriu uma – aquela que está reservada ao jovem, poderíamos completar. Este, ao ganhar o mundo, contesta a experiência do irmão, rompendo com a razão paterna e com a sua confirmação (a volta do filho arrependido).

Esta peça final revela que a antítese fundadora do livro é representada pelo contraste entre a acomodação a um destino tacanho e a liberdade, entre a pequenez da vida provinciana (que caracteriza quase todos os contos) e a necessidade de perder (ou ganhar) horizontes. Romper com os laços de família é também romper com a província. O livro, dessa forma, continua a ação profilática empreendida pelo autor na experiência iconoclasta da revista Joaquim, atribuindo à juventude o poder heroico da revolta.

Dalton está propondo uma ultrapassagem dos muros da cidade através de uma feroz crítica à acomodação (a um universo familiar) e àqueles que querem a segurança de uma morte entre os seus, de uma morte na (sua) praça. “Morrer em casa ou longe dela, qual a diferença?” – questiona o caçula.
por Miguel Sanches Neto

NOTA

O texto Cenas Domésticas foi publicado primeiramente no jornal A gazeta do povo, em 14 de julho de 1994 e disponibilizado no site Herdando uma biblioteca, do escritor Miguel Sanches NetoA republicação no LiteraturaBr faz parte de um acordo entre esses dois veículos.