Domingo será a vez do teu moinho
Nesse tempo, ou já muito antes, era considerado um tipo insociável. Fumava desalmadamente, macerando o cigarro de um canto para o outro da boca, num jeito nervoso nada fácil de imitar, roendo a todo o momento qualquer danação íntima que se traduzia nos modos como fazia crer às pessoas que a presença delas me era insuportável.
É assim, para que não restem dúvidas em relação à sua capacidade de relacionamento com os outros, que Jorge, o narrador, começa a contar um ano da sua vida. Não um ano como os outros. Este mereceu o privilégio da narração. Porque Jorge talvez tenha descoberto que a sua insociabilidade era apenas uma máscara que encobria as suas fragilidades. Ou porque encontrou alguém digno de narração, como prefere assumir:
Quem deveria ter escrito esta narrativa era Clarisse, porquanto é dela, e só dela, que iremos falar (o que direi de mim é, afinal, pretensioso e abusivo) ─ e então estou certo que o leitor sentiria logo um soco no peito, prenunciador de emocionantes expectativas, se ela o agredisse com um início assim: «Chamo-me Clarisse e vou morrer. Mas, entretanto, conheci um tipo […]».
Este tipo é Jorge, o narrador, médico, que, depois de ter conhecido Clarisse, se envergonha de algumas das suas atitudes e faz corresponder às suas «ondas de fastio, arrogância e aspereza» a palavra «exibicionismo». A aspereza, que era mantida com médicos, enfermeiros, doentes e até com o dirigente máximo da clínica, nem sempre era de má índole e muitas vezes denotava um forte sentido de justiça social:
Todo eu me sacudia num risinho secreto, mal aflorado no desdém que me afilava o queixo, se me constava que o chefe da clínica, um sujeito de contumélias tresandando a alfazema e frases adocicadas, soltava guinchos de porquinho-da-índia ao dizerem-lhe que eu me negara espetaculosamente a observar uma dama da alta roda que se julgara no direito de passar adiante da gente humilde das consultas ─ um rebanho paciente que se reunia como reses aturdidas à porta de um açougue.
Clarisse era uma doente em fase terminal. Jorge, o seu médico.
Quando Domingo à Tarde foi publicado pela primeira vez, em 1961, Fernando Namora era já um escritor experiente. Nascido em Condeixa-a-Nova, em 1919, e, tal como Jorge, médico, Namora foi trabalhar para Lisboa, em 1951. Escritor e personagem partilham não só a profissão como também a especialidade médica. Ambos dedicam-se aos trabalhos oncológicos que, muitas vezes, apenas mitigam a doença e prolongam a esperança de quem sofre.
«E é tempo de falar de Clarisse.» É com esta frase que Jorge declara o interesse em, finalmente, começar a narrar a história da sua doente especial, depois de considerações sobre o próprio e sobre os outros, principalmente sobre «uma rapariguinha insignificante chamada Lúcia». Lúcia é uma jovem médica, com o curso terminado recentemente, desvalorizada, inicialmente, por Jorge, convencido de que se tratava de mais uma no grupo de «rapazinhos presumidos», ali colocados através das relações sociais do chefe da clínica e que «vestiam a bata como os cadetes vestem a farda dos domingos: para conquistar dactilógrafas.» Lúcia era, no entanto, diferente . E não só fica a trabalhar com Jorge, como lhe tenta abrir o coração empedernido. Mas é Clarisse quem melhor consegue afastar Jorge da sua rotina de solidão e indiferença.
Antes, porém, de começar a falar de Clarisse, Jorge lembra algumas das suas experiências mais enriquecedoras. Fernando Namora, através de Jorge, apresenta com mestria traços da sua admiração por um povo aparentemente menos instruído:
Tenho aprendido muito com o povo. Nele, as coisas que dão à vida inesgotável grandeza não foram ainda violadas nem empobrecidas. O instinto do povo guarda-lhes o mistério e a seiva. Ainda hoje, na consulta, ao insistir com um aldeão para que me descrevesse o seu mal, ele, por fim, disse-me:
─ É a natureza comida.
A natureza ─ o sexo. Dêem-me tratados onde se atinja esta sabedoria e esta serena humildade.
Embora Fernando Namora seja considerado um dos grandes nomes do neo-realismo em português, Domingo à Tarde não se apresenta como um exemplo desta corrente. Constatação que não deveria preocupá-lo, avesso às escolas, às correntes e aos compromissos estéticos. Este romance é intimista, psicológico, a pessoa é mais importante do que a classe e, apesar de um fatalismo que, como conceito abstrato, tão bem serve ao neo-realismo, em Domingo à Tarde não há qualquer tipo de preocupação consistente, forte, com desigualdades sociais ou com sentimentos de classe. Mesmo que se fale num «pobre camponês, que alugava os braços a qualquer senhor medieval lá dos sítios», ou num mundo em que é permitido, «sob o mesmo céu benzido por Deus, haver hotéis majestosos, onde o burguês nem sabe que mais uso fazer do conforto, ao lado de quem não possui um farrapo para se cobrir», tal são referências pontuais sem qualquer tipo de importância no desenvolvimento da história.
O enredo progride através de uma narrativa simples. Clarisse é doente do independente Jorge e vai conquistá-lo. À medida que a doença avança, acompanhada de mudanças de humor e de perguntas inesperadas, o médico é levado pela sedução até à fronteira da loucura. Numa altura em que Clarisse não está internada, decide procurá-la. Consciente de que não se «encontrava muito bem da cabeça», mas disposto a tudo para alcançar o que desejava, vagueia pela cidade e entra em bares «onde nenhuma mulher decente consentiria em enfiar o nariz».
Entretanto, começam a passear. Conhecem todo o tipo de gente. Clarisse é extrovertida. Jorge não se abre como a sua amada. Chega a acontecer que apresenta Jorge como o médico que pode ajudar na grave doença. Ela dá esperança às pessoas. Será a que lhe sobra. Ela quer viver.
Jorge vai narrando os acontecimentos com «pormenores supérfluos» para o leitor. Justifica-os com a «harmonia do tempo, que é feita do modo como os acontecimentos se entrelaçam e valorizam». E, talvez sem que disso tivesse tido consciência, Fernando Namora acrescenta um pensamento que, sendo verdadeiro para todos, é usado de forma abusiva por pessoas com dificuldade em resolver os seus problemas: «A vida tem uma composição, de avanços, pausas, recuos, cujos processos se nos escapam.».
Jorge cede quase sempre às vontades de Clarisse:
Clarisse dispôs-se a irmos, a pé, até à chamada «praia da lota». Ainda lancei um olhar cobiçoso para as colinas arborizadas, no cimo das quais rangiam as velas dos moinhos, mas Clarisse calou-me os instintos serranos com a promessa:
─ Domingo à tarde. Domingo será a vez do teu moinho …
Não houve moinho. Clarisse morreu.