Por António Carinha
25 de março de 2013
Liberdade e amor: O físico prodigioso, de Jorge de Sena
Jorge de Sena escreveu O Físico Prodigioso no Brasil. Inicialmente publicado no volume de contos Novas Andanças do Demónio, em 1966, conheceu publicação independente em 1977. Entretanto, havia já sido incluído numa reedição da Antologia do Conto Fantástico Português, em 1974.
Jorge de Sena nasceu no Porto, no dia 2 de Novembro de 1919. Licenciou-se em engenharia civil, em 1944, e casou-se, em 1949, com Maria Mécia de Freitas Lopes. Em 1959, por razões políticas, exila-se no Brasil, iniciando uma carreira universitária na área de que realmente gostava, a literatura, algo que lhe haveria sempre de ser negado em Portugal, ele era engenheiro, mesmo depois da revolução que acabou com a ditadura.
Mas o que vem a ser este físico (ou médico, ou mágico) que Jorge de Sena apresenta?
Jorge de Sena escreveu O Físico Prodigioso, em 1964, em Araraquara. Segundo o próprio, em nota para a primeira edição individual desta novela, o físico foi criado «como símbolo da liberdade e do amor». É ainda o escritor, na mesma nota, que explica a razão de o ter incluído anteriormente em Novas Andanças do Demónio:
O Físico Prodigioso, com as suas dimensões e a sua estrutura de novela (classificação que temos o direito de usar em português, pois que a possuímos, no mesmo sentido em que os alemães se acham originalíssimos com a sua novelle, como os russos com o seu povest), não teve outro remédio que não juntar-se aos seus irmãos mais breves, para não ficar na gaveta de onde era alguma audácia tirá-lo (e alguma coragem editorial o publicá-lo então), naqueles tempos de censura rigidamente moralística que o descarado pan-erotismo do «físico» podia chocar, caso a não chocassem as implicações fundamente revolucionárias e subversivas da narrativa inteira.
Quando foi iniciada a leitura de O Físico Prodigioso, um aroma a Alexandre Herculano pairou no ar. Este odor foi sentido com o nariz, pois é assim que desde sempre os odores são sentidos, e com o coração. Não foi solicitada à razão o seu juízo neste caso. O que não significa que não haja razão no que foi dito. Haverá, até, mais do que nariz e coração, razão. O que se quer dizer é que ela não foi chamada a contribuir com qualquer parecer que justificasse o aroma do autor de A Dama Pé-de-Cabra. Ao leitor desatento deste artigo é dada uma ajuda: O Físico Prodigioso é A Dama Pé-de-Cabra. Mas este é um tema que será desenvolvido aquando da análise da lenda que Alexandre Herculano trabalhou. Até lá, entretanto, outro «físico» será tratado, com Fernando Namora. E, já agora, outros prodígios serão abordados, sob a pena de Lídia Jorge no seu primeiro romance.
Jorge de Sena baseou-se em dois contos medievais para escrever O Físico Prodigioso. Esses contos fazem parte de O Orto do Esposo, livro de exemplos de finais do século XIV ou inícios do XV, de autor desconhecido. Religioso e de pendor moralista, é claro nas suas narrativas. Os seus elementos míticos e simbólicos foram aproveitados por Jorge de Sena de uma forma original. Citado na mesma nota de Sena atrás referida, E. M. Melo e Castro, refere-se à obra como um «modelo». Jorge de Sena sente-se grato com as palavras do responsável pela inclusão do seu escrito na edição de 1974 da Antologia do Conto Fantástico Português, mas rebate algumas ideias:
«Modelo», não creio que a minha novela o possa ser para alguém fazer uma coisa parecida, a não ser no fundir com a invenção própria muito do mais profundo da natureza humana (se tal coisa existe), muito do que é parte do inconsciente colectivo e comum a várias civilizações […]. Por outro lado, mais me parece que «modelo superlativo» está a funcionar como um sintagma indicando o carácter fora do comum, qualitativamente e quanto às suas características fantásticas, da narrativa em questão. Quanto a «moldes clássicos», permito-me discordar ─ nada há de clássico nesta criação minha, literariamente falando, a não ser que duas breves estórias do quatrocentista e anónimo Orto do Esposo […] possam servir de suporte a «clássico» por sê-lo quanto seja antigo e tenha dado entrada no panteão das letras.
Jorge de Sena baseia-se, pois, nos dois contos de O Orto do Esposo. Mas, a partir deles, cria uma singular história de amor, sexo, salvação e poder.
D. Urraca agoniza por falta de amor. Certo dia, três donzelas do castelo reparam num jovem que, nu e de forma sensual, se banha nas águas límpidas e muito frias do rio. Era Verão. As donzelas espelhavam «compostura e inocência». Lamentando a sorte de sua senhora, a quem preveem a morte para breve, declaram as características de quem a poderá salvar, num misto de atrevimento e vergonha (mas o leitor, mais à frente, pode recordar esta passagem como um atrevimento dissimulado de vergonha, que a história continua diabólica e salvadora):
─ […] ela espera continuadamente um filho de rei.
─ Que tenha em si três condições mui nobres.
─ Que seja mui formoso.
As três donzelas entreolharam-se. E foi a primeira quem continuou:
─ Que seja grande físico.
Entreolharam-se outra vez. Seria?
─E que …
As três ruborizaram-se, e casquinaram risinhos com as caras juntas.
─ E que mais? ─ perguntou o cavaleiro.
Uma das outras disse:
─ E que seja …
A primeira então completou a frase: ─ Virgem.
O jovem cavaleiro sorriu de leve e perguntou:
─ Tem mesmo de ser filho de rei?
Tendo-lhe sido dito que «não era condição indispensável», partiram para o castelo. Lá, recebeu a desconfiança, entre outros, dos dois físicos que o receberam:
─ Grande físico… veremos ─ disseram os dois médicos.
E logo lhe começaram um exame. Usava ele imbigo de menino, cozido ou frito? E a corda de enforcado? Quanto tempo a punha de molho? Pela lua nova ou pelo minguante? E o olho mirrado do gato preto? Torrava-o? E a mão de toupeira?
Esta atualidade, porque a essência dos homens não muda, sejam eles físicos antigos ou médicos modernos, faz sorrir quem já passou por testes de desgosto mal disfarçado pelas conquistas alheias. Sorria-se, pois! Até porque a senhora quer a presença do físico sem demoras. O físico, que deseja com o mesmo ardor curar a senhora, não tarda em se colocar na sua presença e em tirar-lhe «todas as coberturas».
O processo de cura é iniciado. Dona Urraca de Biscaia, filha de Dom Tortozendo Ermiges e viúva de Dom Gundissalvo Matamoros, banhar-se-á no seu sangue e provará a sua entrega pura e virginal, muito boa também. Tão boa que lhe proporciona o elogio:
Tu me tiveste como ninguém teve nem eu sabia que fosse possível. Vou dizer-te mais: nunca me acontecera como aconteceu contigo. No fundo eu desprezava-os e aos desejos deles, mesmo quando eu era quem o provocava, ou talvez por isso mesmo; e nunca me entreguei inteiramente, agora vejo que nunca. Eu tinha horror deles e de mim. Mas tu…
As relações de amizade e de sexo entre os dois não terminaram depois de o jovem físico ter perdido a virgindade. A fama do jovem era tal que as donzelas não se faziam rogadas em se aproximarem do leito dos prazeres. Ou, dito de forma mais medicinal, do leito das curas. O festim, aliás, extravasou da cama: «eram jogos, banquetes, passeios, caçadas».
O poder do físico era-lhe proporcionado pelo gorro que usava. É assim que ele pensa. E teme pelo seu desgaste.
Antes, porém, que perdesse os poderes com o fim do gorro, foi mandado prender, juntamente com Dona Urraca, pelos representantes do poder religioso. Iniciou-se um processo que durou anos:
O processo durou anos, com os interrogatórios dos acusados principais, dos acusados secundários, dos cúmplices, dos enfeitiçados e portanto só indirectamente responsáveis, das testemunhas, dos declarantes, dos peritos, dos teólogos. Depois, com os contra-interrogatórios […].
Foi já muito depois de tudo ter começado «que o Santo ofício descobriu […] que o que parecia ser um simples caso de feitiçaria e pacto com o Demónio […] era, na verdade, uma gigantesca conspiração do Demónio contra a ordem estabelecida».
Depois de muitas dificuldades, reformulações, reclassificações, o físico é condenado a morrer na forca. Mas o físico foi ajudado. Seria uma ajuda divina se não fosse a do Diabo. Teria o físico uma ajuda divina do Diabo? Deus e o Diabo em um só? As feições foram mudando em alguns protagonistas. Agora, como já antes tinha acontecido com Dona Urraca, os frades assumem as feições do físico. Teria Deus assumido o papel do Diabo? O Diabo quis ser Deus ou apenas perpetuar o poder de um seu representante? A verdade é que é o Diabo que salva o físico da morte. O carrasco queixou-se: «não morre; quando calco para baixo, alguém ─ e benzeu-se ─ o levanta para cima.»
No último capítulo da novela, Jorge de Sena revela uma cidade onde os assaltos e os incêndios não inibem a população de viver «num delírio de prazeres.» Mas a peste chegará. É assim muitas vezes, o fim. E o princípio.