Por Nathan Matos
11 de março de 2013
Infinitas praias, de Gustavo Nielsen
Quando nos deparamos com algo que possui uma metamorfose declarada, como a do camaleão ou a da lagarta, ficamos a esperar o vislumbre que vem com aquele ato. Ao iniciar uma leitura sempre pensamos que algo tão revelador irá acontecer. Foi assim que me senti enquanto lia A outra praia, do escritor argentino Gustavo Nielsen.
Os diálogos iniciais que não são, digamos, esclarecedores, fazem com que nos portemos de maneira diferente na poltrona. Gustavo Nielsen ilude-nos com sua narrativa muito bem arquitetada. É um escritor que se utiliza de flashbacks como poucos. Tal método pode ser tido como algo recorrente em romances de suspense, mas nem todos têm a capacidade de nos fazer exclamar ‘Eu não acredito!’.
Toda a história é realizada através de uma trama que aos poucos nos coloca em confronto com nossas crenças. O que pode existir além desse mundo? Como se dá essa passagem? O romance de Nielsen não é uma simples história que trata de espectros que conseguem contatar os vivos. É um romance que se preocupa em mostrar em que estado psicológico podemos nos encontrar no além-vida. Sim, isso é possível.
Era como se tivessem cansado de fotografar entre si e começassem a buscar ao redor algo que valesse a pena enquadrar
Esse é o comentário que Antonio, pai de Victoria, tem para si enquanto vê, junto a Marta, Sara e Zopi, mais de trezentos e sessenta e sete slides de uma família em viagem. Essa busca do enquadramento fotográfico nos parece ser a própria representação da busca que será feita por Antonio. Os sentimentos que lhe invadem, desde o início do romance, de solidão e de insegurança, fazem de si um homem perdido.
Sua insegurança é bem representada quando o narrador nos mostra que Antonio
Buscou um lugar onde houvesse muita gente: uma praça. Para sentir-se seguro, ia necessitar de uma multidão. E se todos eles, as mães, as crianças, o zelador, o policial, o vendedor de balões, os aposentados, as pombas, os gatos; se todos eles fossem espectros? Se fossem seres de outros tempos que, por alguma circunstância, houvessem se extraviado em outra dimensão?
E aqui, temos já o indício do que o romance trará à tona. Percebe-se que Antonio divaga sobre assuntos que outra pessoa comum não o faria, mas levando em consideração a sua falta de segurança de estar com os seus, já que não se sentia reconfortado quando em casa, ao lado de sua esposa Marta e de sua filha Victoria, observa-se que tais pensamentos nada são mais do que a representação da sua própria insegurança.
A busca que Antonio se proporá a fazer para si será convertida em “andanças fotográficas”, nas quais irá acabar por se deparar com uma moça chamada Paula (ou seria Lorena?). A partir dessas andanças, irá descobrir por qual razão se sente tão solitário, tendo em vista que se sentirá completo quando fascinado pela beleza que despontará à frente da câmera antiga, da jovem que prendia os cabelos de maneira a deixar o pescoço à mostra.
Quando as fotos são reveladas e são descobertas, mais tarde, por Marta, para ela é simples: está sendo traída. Porém ela sabe que a realidade não é essa, mas não cabe a ela dizer a Antonio o motivo de tudo o que ocorre com ele. Cabe-lhe fazer seu papel, ser sua mulher, sentir-se traída e deixá-lo ir em busca de respostas, enquanto cabe ao fotógrafo descobrir-se. Antes que ele parta, ela faz com ele um jogo de 30 segundos, onde cada um dirá o que está a sentir. Esse momento é um dos momentos reveladores para que a obra do argentino mantenha-se firme como a casa da praia.
Apertou o pulsador. O cronômetro começou a funcionar. Marta esperou sem falar durante vinte e cinco segundos. Quando o tempo estava por se esgotar, disse:
– Te amo igual.
Antonio deteve o cronômetro.
A partir daí o que se vê é o entrelaçar dos mundos, dos sentidos e dos sentimentos. Tudo está conectado profundamente com a casa. Não é à toa que o espaço da casa será motivo para a criação de uma metanarrativa. Gustavo, que é escritor, e que não coincidentemente tem o mesmo nome do autor de A outra praia, namora Lorena. Ele tenta realizar o livro da sua vida, aquele que lhe porá entre os maiores escritores de seu tempo, quanto ao gênero de ficção. E ele é levado a acreditar, quando isolado na casa, para a realização do seu livro, que está sendo contatado por pessoas de outra dimensão, como haveria se perguntado Antonio, no início do romance.
Todos os elementos de Nielsen são muito bem colocados em cena, nada é deixado de lado. Parece-me que ele segue bem à risca a dica que Tchekov um dia proferiu: Se no primeiro ato você tem uma pistola pendurada na parede, então, no último ato você deve dispará-la.
A trama é cheia de representações, que aos poucos vão sendo reveladas, como se todo o romance fosse uma foto em processo de revelação. É como se o narrador nos mostrasse todos os aspectos desse processo e desejasse nos fazer cientes de tudo. Lorena fica sabendo, então, do que aconteceu com Gustavo. Ela suspeita que o espectro que tentou contatar Gustavo possa vir a ser seu pai, se dispondo, assim, a ir sozinha ficar na casa de praia.
Esse é o outro ponto crucial para a narrativa. Pois aqui é onde se dará o encontro entre os dois mundos. Muitas perguntas serão feitas de ambos os lados. Ações ocorrerão, mas nada será tão inconcebível ao ponto de não podermos tratar Antonio como um homem. Homem ele é e como homem se pergunta o que está acontecendo com ele. Sua dúvida, não é mais existencial, mas em que existência ele vive. De que maneira tudo se deu. Como a memória foi perdida e por quais motivos tudo parece ser tão igual.
Outra vez, voltaram a se calar. Ela cuidou de que a manta lhe tapasse bem as pernas.
Por fim, Lorena se decidiu.
– E? Como é?
Antonio sabia do que ela falava, mas igual perguntou:
– A morte?
– Sim.
Antonio levantou as sobrancelhas.
– Até agora, igual. Te colocam tudo assim, para que seja igual...
Para que eu possa me sentir ser enquanto 'vivo', mesmo que em outra dimensão, que em outro 'estado de espírito. É dessa forma que perdemos as estruturas das relações convencionais. Mesmo que alguns não concebam outros mundos ou dimensões, nessa ficção ‘argentina’ tão universal, o que se pode perceber é que algo é sempre deixado para nós. Os questionamentos não podem ser todos respondidos até que nós mesmos aceitemos respondê-los. Tudo pode ser parte inventiva de nossa cabeça ou tudo pode ser apenas realidade, basta sempre deixarmos a janela aberta. Se A outra praia existe ou não, isso não interessa, vale mais a pena pensar se Antonio voltará para nos contar mais sobre como é a vida por lá ou se ele apenas se sentirá completo, ao menos uma vez.
Livro: Nielsen, Gustavo. A outra praia. Editora Dublinense. 2010.
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