De inéditos e ineditismos
Passados dois anos da publicação de Claraboia, findei nesta semana a leitura do romance perdido de José Saramago. Perdido foi a expressão utilizada durante a campanha de publicidade da obra. O escritor compôs esse texto ainda nos idos de 1950, depois de uma decepção literária anos antes com Terra do pecado, e o datiloscrito ficou escondido pelas mãos dos editores aos quais Saramago submeteu a obra, até quando do recebimento do Prêmio Nobel em 1998. Depois disso, manifestando interesse em editá-lo, o autor foi categórico: o livro só viria a lume depois de sua morte e se os responsáveis por seu espólio assim quisessem. Se o romance hoje está ao alcance do grande público é, sim, graças a Pilar del Río, viúva e presidenta da fundação que leva o nome do romancista.
Bom, mas não será este um texto para apreciação crítica do romance em questão; isso é já assunto para outra ocasião. O caso aqui citado é para introduzir um comentário acerca de um modismo mercadológico que tem tido seu boom nos últimos anos. Os da nova geração de leitores já terão se acostumado com essa moda que é a de remexer arquivos esquecidos pelo tempo a fim de achar entre os papeis – e são muitos – deixados pelo escritor um texto qualquer que dê brecha para uma publicação inédita e de preferência surpreendente, cheia de revelações a ponto de até mudar determinados conceitos acerca dos já fossilizados.
No caso de Saramago há uma diferença dos demais porque houve uma manifestação ainda em vida por parte do escritor em não querer ver o livro esquecido feito de estandarte capital ou mesmo ser capaz de receber a vaia da crítica ou o seu silêncio, como foi em relação à Terra do pecado. Mas, ao dizer que depois da sua morte fizessem o que quisessem com o achado já abria margens para acreditar que a sua publicação não seria de todo mau grado do escritor. Quero me referir a outros casos em que o autor já morto – e em alguns que a obra já se encontra em domínio público – que uma decisão do tipo, isto é, tornar público aquilo que ele escondeu por toda uma vida ou mesmo disse não querer vê-lo publicado, deixa-se ser integralmente levada por uma equipe editorial que tem, antes do interesse artístico e estético, os claros interesses de lucro sobre o produto; e aqui, incluo na mesma lista os parentes ou os estudiosos da obra de um escritor.
E para todos os lados se multiplicam casos; e para grande maioria deles há exageros. Há brechas na lei de direitos autorais, por exemplo, que dá muita permissividade aos herdeiros para tomar determinadas decisões, como a de publicação de originais. Digo isso porque, sabendo que escritor sempre escreve mais do que publica, sei também que ele tem seus critérios críticos e capacidade de seleção que não estão ao alcance, em boa parte das vezes, dos herdeiros. Para uma situação do tipo, parece sensato que a decisão do autor deveria ser um direito irrevogável; seja o herdeiro quem seja, a decisão do autor é um direito literário e, sobretudo, moral e de respeito à sua memória. Para aquelas situações que não envolvem o nome de herdeiros, nem de instituições designadas pelo autor, talvez fosse justo a existência, no âmbito da justiça, de fóruns especializados que pudessem avaliar, por exemplo, a decisão de publicação. Em todo caso não se deve acreditar que o simples fato de o autor não ter dado fim àquilo que não foi publicado seja sempre uma interpretação direta de que deve ser feito público; nem que deixado a um herdeiro responsável este tenha todo direito de exploração do material.
E, por fim, cumpre ainda pensar em casos mais extravagantes, como os de intervenção dos herdeiros sobre os textos, seja pela reescritura do manuscrito, pela supressão de parágrafos, pela escrita de conclusões aos textos. Todas essas situações infringem diretamente sobre a escrita e não se constituem em trabalhos inéditos como vão sendo propalados pela mídia. Pode ser que a intenção ou tema estejam ali preservados, mas as intervenções, por si só, descaracterizam a originalidade do texto e fazem dele o texto de outro autor. Estou aqui pensando naquela personagem de Jorge Luis Borges no conto “Pierre Menard, o autor de Dom Quixote” que se debruça na fatídica ideia de reescritura do romance de Cervantes e, mesmo que sejam repetidas os pontos e as vírgulas, tudo à sua imagem do texto original, já no fim não será o Dom Quixote de Cervantes, mas o de Pierre Menard. Fato é que, se isso fosse levado a sério não teríamos a imagem que temos, por exemplo, hoje, de Kafka. Já no caso de Saramago, a própria Pilar já deu negativas à mídia de qualquer inédito do escritor, restando apenas as poucas páginas para o último romance em que ele trabalhava no ano em que morreu; no caso de Claraboia, o texto já estava pronto, havia sido encaminhado para edição e as únicas alterações feitas foram as de adequação ortográfica; entre 1950 e 2011, nós, os usuários da língua portuguesa, já passamos por duas reformas.
Mas para que os casos de absurdos sejam freados, uma vez estarmos no auge da moda dos inéditos, muita coisa há que ser revista. O direito de posse não deve ser confundido com o direito de publicação e difusão dos escritos – ainda mais quando se envolve capital sobre. Afinal, propriedade intelectual não se transmite por herança e muitos dos casos em que envolvem dinheiro podem ser enquadrados como apropriação e uso claro de exploração indevida. Que estes escritos estejam acessíveis aos estudiosos e leitores da obra do escritor, é válido, agora que sejam tornados produtos de venda sem o consentimento do autor ainda em vida ou simplesmente pelo interesse financeiro de herdeiros, não; o ideal é que, em última ocasião, seja dado a um fórum de especialistas a decisão. Um trabalho artístico, seja de que natureza for, não pode estar atrelado simplesmente às leis de mercado; como criação intelectual têm em sua natureza outros valores e estes precisam ser preservados.
por Pedro Fernandes de O. Neto*
*Aluno do Doutorado em Literatura Comparada pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. É autor de Retratos para a construção do feminino na prosa de José Saramago (2012, Appris, 280p.) e editor do blog Letras in.verso e re.verso e do caderno-revista de poesia 7faces.