Octavio C e a mudança como esperança
Octávio C. é um homem comum, talvez até demais. Na realidade, ser homem comum, nos dias atuais, não é algo tão simples como parece. Emitir uma opinião, ter o seu próprio pensamento, já não é o mesmo que antes. Todos são praticamente iguais e donos do saber, e ao final das contas pensam todos exclusivamente em si, ou não? Talvez tenha sido a leitura de Os 3 desejos de Octávio C. que tenha feito eu barafustar as ideias, pois ele ultrapassa os limites do esperado, das razões humana e inumana, se é que se assim pode dizer, até mesmo pelos gênios das lâmpadas.
Sim, gênios existem e não adianta ficar assustado. Não adianta buscar uma explicação para a existência deles e nem saber se eles são seres mágicos ou extraterrestres, apesar de que ficamos sabendo que eles já viajaram de galáxia em galáxia, de planeta em planeta, até que pudessem ser ‘úteis’ novamente. Você não acha que somos a única raça de todo o universo que é problemática, ou acha? Mas o que nos convém saber é que Octávio é um homem preocupado com a humanidade.
Um gênio aparece, não por vontade própria, mas por ter sido designado a aparecer especificamente para o funcionário público responsável pelos Divórcios a pedido do seu dono anterior. Opkinson, homem de nome estranho, americano, foi quem enviou uma candeia, contendo um gênio, para Octávio C., seu neto.
Diante dos questionamentos do personagem sobre por qual razão seu avô teria deixado aquele objeto de herança, o funcionário público acaba por tocar sem querer na candeia, ou seria o inconsciente trabalhando, como dirá o gênio?
– Mas eu não te chamei! Só se esfregasses a candeia!
– Não te lembras? Quando te sentaste no sofá com a candeia no colo, esfregaste-a com a mão esquerda. Podes não ter dado por isso, mas o que interessa é o gesto. Ou isso a que vocês chamam o inconsciente. Ninguém esfrega uma candeia se não tiver pelo menos um desejo a concretizar.
O gênio de Pedro Eiras é diferente. Ele não aparece ao vivo e a cores, como nas lendas ou nas histórias infantis, como irão comparar certos críticos. O gênio de Octávio C. é diferente, ele se faz distante daquela ideia de que temos do gênio da lâmpada, tanto na forma de surgir quanto à personalidade. Ao esfregar a candeia, como é chamada em Portugal, nada acontece, pois os gênios aparecem somente em sonho, devido aos problemas que tiveram com a humanidade anteriormente.
– E por que só apareces em sonho?
– É uma história complicada, ao longo dos séculos nós aparecemos a muitos donos em carne e osso, mas deu mau resultado, pensaram que nos podiam tratar como escravos, tivemos de fugir mal se cumpria o terceiro desejo... Em suma a culpa é vossa. (...) Mais vale assim, nos sonhos pelo menos fica tudo logo claro.
Mesmo assim, frente aos poderes do gênio, Octávio C. não crê no que vê, ou no que sonha. Porém, o gênio diz que cabe ao apaixonado por Anabela desejar ou não, acreditar ou não. E se preferir, pode durante as três noites seguinte não realizar pedido algum, transformando o gênio em algo inútil.
Desde sua aparição, o gênio tende a ler os pensamentos de Octávio e a querer a ajudá-lo. Aparenta querer realizar os maiores sonhos de seu dono, que nega a ajuda e o proíbe da leitura de seus pensamentos, mas a esse tempo o gênio da lâmpada constantemente irá lembrar a Octávio que deve pedir para ter Anabela junto a ele, pois isso é o melhor que se há de fazer.
O responsável pelos Divórcios, Octávio, não acredita ser merecedor destes três desejos e se acha na posição de utilizar esses pedidos em prol de toda a humanidade. Ele acredita que deve pedir algo para todos, algo que faça bem ao coletivo. Esse é o erro de Octávio C., ter esperança de que os seus desejos possam vir a salvar a humanidade.
O que ele não sabe é que a paz entre os homens, essa benfeitoria que tanto almeja para todos, é algo praticamente impossível. Talvez seja a época em que vivemos que nos faz acreditar que são necessárias as guerras, talvez seja a inocência que ele tinha consigo na infância que o faz pensar assim, talvez seja apenas o seu próprio jeito de ser, um pouco humano.
O livro de Pedro Eiras, escritor português que aos poucos vem ganhando espaço entre os leitores brasileiros, apresenta uma história cujo objetivo é nos fazer refletir sobre a nossa condição humana. Tal reflexão, realizada por Octávio C., não acontece de maneira ontológica ou fenomenológica como alguns leitores podem vir a acreditar. A narrativa, muito bem arquitetada, possui um ótimo senso de humor, principalmente na figura do gênio, que diz não poder se utilizar de ironias, pois os gênios não são humanos, logo, eles não conseguem dominar essa ironia.
– Eu digo sempre o que quero dizer e quero dizer sempre o que digo. Nós, os génios, não conseguimos dominar a ironia e essas figuras do discurso todas, tão ricas, da vossa linguagem. Quem nos dera! Mas não, somos terrivelmente, terrivelmente literais.
– Quando falas, não é o que parece.
– Então talvez o não-parecer seja a literalidade do meu discurso.
Essa reflexão é realizada através dos pedidos de Octávio. Eles trazem, com certeza, alguns dos questionamentos que qualquer humano já possa ter feito. Dessa forma constrói-se a relação entre os dois personagens do livro, o diálogo que se estabelece é de divergência de ideias, pois ambos utilizam-se da razão para tal fim. A partir de seus desejos, Octávio acaba por esquecer o mal que eles podem causar à humanidade, modificando os sentimentos das outras pessoas. E sentirá isso na pele, quando, após a realização de um dos seus pedidos, observará como o seu vizinho o ‘assalta’ com um garfo!
– Não me obrigue a usar isto, Sr. Octávio. Peço desculpa. Não tenho outra escolha.
Não respondi, mas lembrei-me do pudor do meu génio em suprimir os garfos. O Sr. Zebedeu agarrou no saco com a mão esquerda, continuou a empenhar o garfo com a direita, e recuou pelo meu apartamento até à porta. Acompanhei-o a uma distância segura. Não consegui sentir muito medo do garfo que o Sr. Zebedeu usava, mas não queria que se sentisse pressionado a usá-lo. Por fim, o meu vizinho chegou a porta do apartamento dele, alguém abriu por dentro sem se mostrar, ele entrou. Ainda sussurrou, a tremer:
– Acredite, Sr. Octávio, eu não sou uma pessoa má.
Difícil é acreditar na fala do Sr. Zebedeu. Acreditar que não somos maus é um pouco inocente de nossa parte. O homem só é, digamos, correto, ou tenta sê-lo, quando tem ou pode ter o que deseja a sua volta. Quando tudo que lhe é necessário desaparece, quando não há mais fundo para que possa sobreviver e existir de maneira ‘coerente’ ou harmoniosa com os outros seres humanos, nós esquecemos o quão ‘bons’ realmente somos. Esquecemo-nos das boas maneiras, da solidariedade. Talvez, seja esse um pensamento pessimista, pois há quem dirá que não somos todos iguais. Bem, eu diria que somos todos humanos, e que o pensamento incutido na obra de Pedro Eiras não deixa de ser uma parcela da verdade.
Quando o gênio da candeia realiza o terceiro pedido de Octávio C. o jornalista da televisão anuncia:
Acabo de receber várias notícias ao mesmo tempo... Em Itália, na Rússia, na Guatemala, registam-se mais casos de parricídio e incesto. A lista de vítimas destes dois crimes não para de aumentar desde a madrugada de hoje.
E após a chamada, será entrevistado um psicanalista que irá tentar representar as ações humanas em uma escala totalmente sem sentido, mas que para ele está totalmente correta. É nesse ponto em que nos encontramos, agora mesmo em nossa sociedade, mesmo sem ter havido desejos mágico, sem haver intervenções divinas.
O principal na obra de Pedro Eiras, que quase nos atinge como um asteroide XB-43, é tentar entender de que maneira os três pedidos feitos ao gênio podem representar a nossa maneira de viver. Compreender de que forma podemos tentar modificar o mundo, mas antes de tudo, modificar a nós mesmos, é o que Octávio deseja.
O que Os 3 desejos de Octávio C. transmite é que na realidade não há salvação. O mundo já foi arruinado por vários homens, em várias épocas diferentes. A salvação, se ainda existe, está apenas na mudança, e esse é o grande problema: mudar a nós mesmos. De nada nos adiantará ser bons ou éticos nos momentos de glória ou de comunhão dos bens. O que nos sobrará serão os defeitos e as miserabilidades que possuímos quando algo catastrófico atingir a humanidade ou não nos sobrará nada como quando o XB-43, asteroide criado pelo gênio pelo desaparecimento do dinheiro e das armas de todo mundo, nos atingir.
Entendo que Pedro Eiras, com sua linguagem irônica e ao mesmo tempo séria, como nos dizeres do gênio, nos faz notar que temos uma representatividade no mundo, em todos os momentos da história. Por quê? Porque quando Octávio C. conversa com o Sr. Honório, este diz:
– A História, meu caro Octávio, é feita de diferença e repetição. Nada é absolutamente idêntico e nada é absolutamente diferente. No fundo nós somos sempre os mesmos. Dou-lhe um exemplo, só um exemplo: o medo de morrer. Acha que progredimos um milímetro que seja em relação ao medo de morrer? Não estou a falar do medo dos trovões e desses espetáculos celestes que nos aterrorizavam há uns milhares de anos. A ciência esquadrinhou o céu, enfiou a eletricidade nas nossas tomadas e, para lhe ser franco, não sei se não teremos perdido algum sentimento precioso do mistério com tanta técnica, não sei se nos desenraizámos irreversivelmente. Mas tudo isso estava escrito, de algum modo. E não pense que eu seja determinista. Fui demasiado educado no humanismo para isso. A História é repetição, sim, é previsibilidade, mas também diferença. Por isso eu tenho esperança, percebe, Octávio?
Nós repetimos os mesmos erros e faremos tudo igual em todas as épocas.
Octávio C. realiza os seus três desejos em prol do bem coletivo, mas ele esquece que os homens não podem viver, todos, em total harmonia. Já não se pode viver sem armas ou sem tevês. As armas devem existir, senão galhos serão nossas armas, e todos nós sempre iremos inventar uma nova maneira de nos sobrepormos sobre os outros. Até o momento em que não tivermos mais medo. Até o momento em que tudo seja esquecido por conta da falta de medo. Até o momento em que até os gênios irão fugir do nosso planeta. E enquanto tudo isso acontece:
Entretanto, em Roma, o Papa apela à calma e à serenidade.