25 de fevereiro de 2013

Ao meu lado o 'Diário' de Miguel Torga


Com os pés no chão, a vasta obra de Miguel Torga constitui uma das mais importantes realizações do modernismo da Literatura Portuguesa. A trajetória do poeta, delineada por contornos romanescos a momentos de extrema reflexão sobre o destino e a experiência humana, é, sob os mais variados aspectos de sua personalidade, obstinada e comprometida com a sua terra. O profundo enraizamento em Portugal lhe permitiu criar um universo singular de versos, de personagens, de imagens e de reflexos da própria Vida.

Adolfo Correia da Rocha nasce a 12 de agosto de 1907, em S. Martinho da Anta, região de Trás-os-Montes. Filho de gente do campo, nunca se desligou de suas origens, que, na grande maioria de suas obras, quadram como o espaço Ideal, além de representar o locus referencial de suas reflexões tanto intimistas, quanto universais: a família, como um dos pontos medulares de sua vida/obra, a forte ligação e a admiração silenciosa, mas intimamente terna por seu pai, do entranhar-se nas matas à contemplação do mar, a gente humilde da terra, as serranias, o suor para arrancar o pão das terras extenuadas...


O “nascimento” de Miguel Torga é uma homenagem a três figuras que o escritor considera basilares da cultura ocidental: Miguel Ângelo, Miguel de Cervantes e Miguel de Unamuno. Estes dois últimos traduzem o seu deslumbramento pela Ibéria. Também, o nome “torga” não é uma escolha aleatória. A torga é uma raiz nativa de terras portuguesas: o projeto literário que o autor pretende para si, recupera neste nome uma estreita união à terra e à constituição de um telurismo apaixonado que transcorre por toda a sua obra.

Pretendo realizar algumas notas acerca do seu Diário – híbrido literário – que é constituído pela intensa afinidade de conteúdos entre o lirismo do poeta e a literatura autobiográfica do homem. Os XVI volumes deste monumental e histórico trabalho contêm entradas desde 1932 até 1993.



O diarista, em determinado momento, afirma que “um diário não é necessariamente um perpétuo mea culpa. Pode ser um simples memento, um exercício espiritual, um caderno de apontamentos, tudo o que se queira” (Diário III). Em decorrência disso, Miguel Torga é um artesão da síntese, que busca obstinadamente, um discurso lapidar, como quem talha na madeira ou na pedra. Esses “exercícios espirituais”, práticas de um apurado labor sobre a palavra, correspondem à procura de uma escrita mais intensiva do que extensiva, que equilibre a força expressiva com a brevidade de cada nota ou de cada poema presentes em seus diários. Para isso, o autor de A Criação do Mundo (1937) utiliza-se de uma linguagem selecionada e da depuração vocabular, na tentativa de lapidar as palavras de modo a despi-las de ornamentos, para atingir a sua essência.

São notórios alguns apontamentos em que a humildade do homem do campo se confirma na obra do artista, o que confere à sua obra um contorno de alto relevo acerca dos valores que o poeta sempre fez questão de acentuar em seus escritos:

8 de janeiro 1933 – Ao chegar, encontrei reunido na Central o concílio dos deuses. Sentei-me prudentemente à distância.


5 de janeiro – Passei a manhã como um grande Keats nas alamedas da Villa Borghese. Para dar mais relevo à ilusão, recitava mentalmente versos meus. O que um pobre português tem de inventar para ter dois minutos de justificação!

O diarista também é implacável com a sua própria escrita, dado o apurado trabalho de reflexão e aprimoramento de sua arte. Está sempre a exigir de si a perfeição e a verdade:

Que cada frase em vez de um habilidoso disfarce, fosse uma sedução [...] e um ato sem subterfúgios. Para tanto limpo-a escrupulosamente de todas as impurezas e ambiguidades.


É interessante observar os apontamentos que Torga faz a respeito do seu relacionamento com pessoas do nível político, artístico e literário, pois nunca foi fácil para o poeta a relação com esse tipo de gente. Mais difícil ainda com personalidades ou pessoas com visibilidade pública, que procuravam se afirmar mais pelo nome, do que pela dedicação ao trabalho que pretendiam realizar.



O autor, em alguns de seus apontamentos, também contesta a incredulidade do sujeito moderno que não acredita em valores pelos quais o homem foi e é capaz de dedicar toda a sua vida. É um dos pontos mais cativantes da obra de Torga, pois o poeta busca assegurar uma certa longevidade dos valores de homens do passado, assegurando seus juízos com os valores do homem do campo, que ele tão intimamente entrou em contato, principalmente quando de suas andanças e das consultas gratuitas que fazia para os agricultores de sua terra natal.

Coimbra, 29 de outubro – Já não sei a proposito de quê, pensei hoje nisto: que esta velha humanidade, tudo quanto seja acreditar que dois e dois são quatro, quatro e quatro, oito, e oito e oito, dezesseis, muito bem e sem nenhuma prova; agora quando lhe dizem que há gente que morre pela sua verdade, é preciso mostrar-lhe Sócrates a beber a cicuta, Catão com a espada enterrada no ventre, Cristo pregado na cruz, – e nem assim.

São constantes os apontamentos desse teor, pois sua desconfiança e certa impaciência em relação aos, ditos, intelectuais é suficientemente viva. Também não expressa receio em criticar quem quer que seja, mesmo a obra dos divinizados, como Camões:
           
Coimbra, 28 de Junho – [...] Os Lusíadas, visto a frio, pouco mais é do que realização caseira dessa grande façanha do nosso povo [...] apesar daquela arquitetura toda, daquele admirável formal, Os Lusíadas não conseguem quebrar a sua condenação de epopeia para uso interno. Não me parece que haja boa vontade capaz de comparar o herói Gama a Eneas ou a Ulisses. (Diário I).

Pode-nos parecer arrogante a crítica de Miguel Torga a obras consagradas, todavia devemos ressalvar seu projeto literário. Mesmo que critique a obra do vate português, admira consideravelmente o conjunto de sua obra. O “problema” com Os Lusíadas parte de sua leitura comparativa com as outras epopeias clássicas; acreditando que no épico português haja uma “limitação” e contenção geográfica:

Logo no título a nossa tacanhez se manifestou. Os outros chamaram às epopeias deles Odisseias, Paraísos Perdidos, Divinas Comédias, etc. Nomes que agarram mundos. Nós ficámo-nos pelos lusíadas desta pobre Lusitânia. Bem se sabe que o nacional português era na ocasião o universal. Mas está justamente aí o limitado da visão. (Diário III).

Apesar dessas críticas, Torga defende o herói do épico português, mormente por ser humano. Enquanto Homero e Virgílio cantaram semideuses que realizaram proezas e façanhas dotados de poderes sobrenaturais, guiados pelo desígnio de algum deus, que os resguardavam de toda e qualquer ameaça, Camões canta homens em ação, heróis que atuam por conta própria, concretizam suas proezas e assumem no corpo e na alma as implicações de suas escolhas.



Outro ponto de destaque são as notas que o diarista realiza por conta da morte de um grande poeta ou escritor. Essas notas valem não só como demarcação de uma perda importante e querida, mas presta o devido tributo à obra de autores basilares da Literatura Universal, como também reclama a importância desses tanto para os desígnios artísticos, quanto histórico-sociais:

3 de dezembro – Morreu Fernando Pessoa. Mal acabei de ler a notícia no jornal, fechei a porta do consultório e meti-me pelos montes a cabo. Fui chorar com os pinheiros e com as fragas a morte de nosso maior poeta de hoje, que Portugal viu passar num caixão para a eternidade sem ao menos perguntar quem era. (Diário I).


8 de agosto – Morreu ontem Rabidranath Tagore. Nos jornais, entre peças de artilharia e aviões, a sua máscara cheia de humanidade e santidade veio acicatar em mim este danado problema da salvação. Não da salvação em Deus ou em qualquer paraíso. Da salvação deste mundo de terra, com homens e com paixões. Veio agudamente dizer-me que ou uma, ou outra. Ou se escolhe como ideal um S. Francisco de Assis, ou não há outro remédio senão a gente integrar-se no movimento universal desta gigantesca máquina moderna, e trazer nela de parafuso, como mostrou Chaplin. Assim, divididos, com luz e sombra na alma, vestidos e despidos ao mesmo tempo como frutos mal descascados, é que não. Assim é morrer todos os dias. (Diário I).

Percebe-se claramente a importância dos escritores supracitados tanto na obra do escritor português, quanto na própria vida do homem Miguel Torga/Adolfo Rocha. A tristeza solitária vivida por conta da morte de Fernando Pessoa nos dá a dimensão da estima que Torga conferia ao poeta, uma estima que nos é permitida conhecer mais intimamente, dada algumas cartas trocadas pelos autores e das próprias notas que o diarista realiza. No caso de Tagore, alcançamos imediatamente a dimensão histórica por que passava o mundo, a Segunda Grande Guerra. Torga assegura a distinção humanística que o poeta indiano buscou plasmar em seus escritos, que irá fluir para caminhos de um mais amplo e profundo significado humano.

Poderíamos ainda relatar inúmeros ângulos e matizes nos diários de Miguel Torga, como as inúmeras viagens que o escritor realizou ao longo de seus quase 90 anos. Viajou por quase toda a Europa (Itália, França, Espanha, Suíça, Dinamarca, Bélgica, Iugoslávia, Grécia, Turquia...), passou pela África, pelas Américas e ainda encontrou forças para visitar a China e a Índia já próximo dos oitenta anos: “Pareço um doido a correr esta pátria e nem chego a saber por quê tanta peregrinação”. Sem falar nas incansáveis andanças por todas as regiões de Portugal.

Também seria possível realizarmos uma leitura concentrada na produção poética plasmada nos diários. Contudo, por ser uma leitura, além de extensiva, minuciosa – pois a poesia de Torga alcança nuances intimistas e universais, como também recupera uma tradição poética clássica, estabelecida nos mitos e personagens históricos – preferimos apontar alguns temas essenciais de determinados apontamentos e reflexões para possibilitarmos aos interessados uma futura leitura do Diário do poeta e contista português.

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Mais do que um amplo panorama, a obra de Miguel Torga é todo um programa. Desde a rebeldia contra a natureza (lembremo-nos de seu livro de poemas de 1958, Orfeu Rebelde) e em todos os outros níveis (humano, político e social), os temas analisados e descritos pelo poeta constituirão o fulcro de sua obra: a independência e intransigência.


Contra algumas vertentes aparentemente conflitantes mas que se completam, o diarista expõe a sua verdade sem quaisquer reservas no exame de pessoas, de acontecimentos e dos fatos que marcaram a sua vida, a história de Portugal e as problemáticas do mundo. Em momento algum receia atacar o estabelecido, apesar de em alguns ensejos alterar as suas próprias posições, desde que a “sua” verdade o exija.