5 de fevereiro de 2013

Três abismos para a morte - I, por Roberto Menezes

Nota introdutória
Aqui, agora, dou início a uma curta série de textos que buscarão no abismo da morte conhecer a profundidade do escuro. Eu mesmo pergunto-me porque tão curta se tão longa poderia ser. Um: medo do naufrágio. Dois: medo das sereias. Três: é um número que me cativa, por ser verdadeiro quando verdadeiro, mas sempre com a presença da possibilidade de mentira. Assim, sejamos breves aqui para não ficar mais longo que lá, daqui a pouco.

1.
O livro: O sol é todo o espaço, de Antonio Ramos Rosa. O poema introduz-se com o verso: “Eu canto a ausência de mim mesmo”. Diagnosticamos, no impreciso ultrassom das palavras, recorrência em vocábulos macerados pelo redizer crítico: “eu canto”, eu sou poeta; “ausência de mim mesmo”, fragmentação do eu e consequente desaparecimento elocutório do autor. Verso carregado de uma contradição evidente: o “Eu” que de pronto inicialmente se anuncia, recusa-se a estar em seu discurso, caracterizando-se como uma presença ausente. Ora, se texto é, então existe. Mas, será que a enunciação do texto nada mais quer que ser a exclusão da mão que o escreve? Ou seria um simples reconhecer do estado de alma que se encontra sobrepujado com a obrigação de existir no mundo? Não paremos.

Ao ler “Só eu sei que essa ausência é eterna desde já / porque será sempre continuamente definitivamente”, sente-se a mistura de dois materiais caros à poesia: tempo e espaço. Em geral, quando se encontra tais segmentos retirados de noções do mundo, bem humanas, se pensa, naturalmente, em oposições binárias que dariam conta das possibilidades que eles ofereceriam: o excesso de tempo (de percepção do tempo), ocasionando a angústia em percebê-lo fugir, ou a ausência de tempo, criando-se um momento fora de todos os momentos, imortalizado em sua perene existência. Doutro e do mesmo modo, a materialização de um espaço, sendo fonte de criação e de concepção da poesia, ou a tentativa de montar uma paisagem em ruínas, onde o espaço seja apenas um vagar flutuante.

Seja a ausência ou a presença desses dois materiais, é relevante a tentativa de conexão com o mundo de uma maneira peculiar, em que envolva certa noção cosmogônica, com o espraiamento do ser pelos canais do mundo: “Assim eu quero que o meu espírito se torne ondas de energia e de luz / e eu me sinta terra voltada para o espaço / e consiga ter a sensação de ser espaço no espaço”. Eis, então, a maneira que o poeta escolhe para deixar de ser mesmo ainda sendo algo: tudo. Estar no espaço sendo o espaço equivale a uma fragmentação do ser elevada a uma potência desconhecida, mas eficientemente poderosa. Que tipo de morte seria esta? Cantar a ausência de si mesmo é encontrar a morte e dela fugir. É o que logo em seguida ele nomeia como “o meu desaparecimento o meu côncavo / recuo para o começo do mundo / para uma porta destinada a abrir-se numa lenta génese / para ser substância palavra túmulo do meu desejo vegetal”. Com o fim atinge-se a possibilidade de retornar ao começo do mundo, onde a palavra nada mais é que um “túmulo” carregado de desejos vegetais, não animais.

Temos outras pistas discursivas para tentar entender para onde vai este ser quando busca a morte como ausência, como subtração da propriedade material do homem. Nos versos “eu poderia sentir que a minha vida era a lenta descida para a morte e ainda / perder-me-ia no deserto infindável do meu ser” encontramos ressoar novamente a intensa ambiguidade do desejo exposto: viver é já uma “descida para a morte”, mas isso também inclui perder-se no “deserto infindável” que é o ser. Reparamos haver outra oposição entre o externo e o interno, ou entre a matéria e uma essência espiritual. Quando ele diz “perder-me-ia no deserto infindável do meu ser” reafirmamos que essa busca de subtração da vida é, na verdade, uma busca pelo ser, o que caracteriza a própria vida.

Morrer, nesse sentido, é a despersonalização da existência enquanto ser humano para tornar-se discurso, este impossibilitado de morrer. Cantar a ausência é assumir o risco de existir discursivamente, sem assinatura na capa do livro, sem troféus e referências bibliográficas. Aparentemente sem medo, o poeta incorre no ato de “morrer ainda mais e sempre”, “porque começamos a morrer logo que nascemos”.
por Roberto Menezes