31 de janeiro de 2013

O visconde partido ao meio, de Italo Calvino


O visconde, ou melhor, o livro de Calvino surgiu aos meus olhos, assim, meio que partido ao meio, no quesito preço. Não suportei, comprei e o li de uma leitura só. A história faz rir, como queria o autor, mas também faz voltar o pensamento para o que somos enquanto humanos e no que podemos nos transformar, tornando-nos tão baixos e sombrios.

O título Visconde partido ao meio pode dizer muito, ou não. Pode-se, a partir dele, pensar que existe um visconde, que é ou foi ou está partido ao meio. Pode fazer questionar se é somente sobre isso que o livro vai falar: um visconde partido ao meio ou se é mais um daqueles títulos que enganam.

As dúvidas logo se dissipam quando iniciamos a leitura do prefácio. Italo Calvino diz que escreveu o livro porque “queria sobretudo escrever uma história divertida para divertir a mim mesmo, e possivelmente para divertir os outros”.

O autor italiano acreditava que o divertimento era uma coisa séria, por isso mantinha consigo a preocupação de que a escrita enquanto técnica não pode esquecer os significados que ela própria pode emanar.

O importante numa coisa do gênero é fazer uma história que funcione justamente como técnica narrativa, enquanto captura do leitor. Ao mesmo tempo, também estou sempre muito atento aos significados: tomo cuidado para que uma história não acabe por ser interpretada de modo contrário ao que penso; assim, também os significados são muito importantes, mas numa narrativa como esta o aspecto de funcionalidade narrativa e, digamos, de diversão é muito importante.

Nota-se também que possuía certa preocupação com os caminhos que o leitor poderia tomar através dos significados incutidos na obra. As interpretações são sempre muitas, mas Calvino assume que tinha todo o cuidado para que sua obra não fosse interpretada de modo contrário ao que ele pensava. Tema esse que é debatido por vários autores e críticos literários: o de que o autor não tem poder sobre sua obra, a partir do momento em que ela existe em si e através da leitura.

Ainda no pequeno prefácio, Calvino deixa claro que divertir não é apenas narrar cenas engraçadas, dá a entender que tudo tem que ser arquitetado, como se a obra precisasse de uma entonação, como aquelas que deveriam ser usadas, talvez, à época de Homero, para se contar  histórias. E Calvino, diga-se de passagem, fazia isso muito bem.

Creio que divertir seja uma função social, corresponde à minha moral; penso sempre no leitor que deve absorver todas estas páginas, é preciso que ele se divirta, é preciso que ele tenha também uma gratificação; esta é a minha moral: alguém comprou o livro, despendeu dinheiro, investe parte de seu tempo nele, deve divertir-se. (...) Penso que o divertimento seja uma coisa séria.

A seriedade com a qual ele tratou o livro não o fez perder em nada o bom humor. Consegue entreter o leitor e ao mesmo tempo nos coloca no cerne da história, na pele do visconde, que está ou foi ou é partido ao meio.

Narra-se, então, a breve história de Medardo di Terralba; sim, era esse o nome do Visconde que se partiu ou irá partir-se. Ele está indo para a guerra, que acontece entre cristãos e mouros, e o Visconde, por sua posição, deve estar presente. Porém, por nunca ter estado em guerra alguma, encaminhou-se para ela ao lado de seu escudeiro Curzio, que aos poucos vai contando alguns detalhes sobre as guerras, para que seu senhor entenda um pouco mais sobre tudo.


Logo no segundo capítulo, ficamos sabendo como se deu a partição do visconde. Medardo, quando à frente de sua tropa, sendo essa formada por umas poucas fileiras de cristãos combalidos, após o início da batalha, vê que existem dois árabes que estavam a comandar um canhão. Ele então acreditando que com sua espada em punho amedrontaria os dois inimigos, se predispôs a combatê-los de frente, mas quando menos esperou levou um canhonaço no meio de si.

Entusiasta e inexperiente, não sabia que só podemos nos aproximar de canhões lateralmente ou do lado da culatra. Saltou na frente da boca de fogo, de espada em punho, e imaginava assustar os dois astrônomos. Ao contrário, mandaram-lhe um canhonaço em pleno peito. Medardo di Terralba saltou pelos ares

Vê-se a inocência que possuía o visconde quanto às armas e o modo de batalhar. Daí, o que se segue não é mais a história do visconde, mas dos viscondes. A parte direita de Medardo, ainda viva, foi recolhida por alguns soldados, que sempre recolhiam os restos dos corpos  após a batalha. Quando os médicos o viram, partido ao meio e vivo, ficaram abismados, mas tentaram mantê-lo vivo, mesmo sem possuir habilidades para tal. Apesar disso, Medardo sai com vida e volta para casa.

Durante todo o livro, quem narra a história de Medardo di Terralba é o seu sobrinho bastardo; que recolhido no castelo vê tudo o que se passa com seu tio. O sobrinho, de quem não se sabe o nome, tinha entre sete ou oito anos quando o visconde voltara. É ele quem vai ser responsável por desvendar o mistério que há por vir.

A volta de Medardo traz muitas aflições para os seus conhecidos e familiares. Seu pai, que vivia dentro de uma gaiola gigante, rodeada de pássaros, e a ama Sebastiana, que será levada para a aldeia dos leprosos, mesmo sem ser ela uma leprosa, porque assim o quis o visconde, eram os que mais esperavam a volta daquele homem partido ao meio. Aiolfo, feliz com sua chegada, envia um passarinho até o quarto do visconde, que se mantinha trancando o tempo todo desde que voltara. Porém, no dia seguinte, na gaiola do rei, um passarinho morto aparece partido ao meio. Com isso, o pai do visconde falece na mesma noite. E não será somente isso que ele irá partir ao meio. O visconde parte ao meio tudo o que lhe aparece pela frente: peras, rãs e até cogumelos venenosos, que dá de presente para o seu sobrinho, tentando assim o seu primeiro assassinato premeditado.

Por essas e por outras ações, como matar vários agricultores e caçadores por terem infligido a lei, através de uma forca que poderia matar ao mesmo tempo mais de vinte pessoas, ficamos sabendo que Medardo mudara e que o pior de si resolvera, digamos, aflorar. O visconde estava literalmente mau, só havia lhe restado a parte ruim de si próprio.

Não acreditamos que o visconde tenha entrado em um estado de depressão, mas que o mesmo não conseguia mais se ver na condição de humano, de não ser mais uno, já que tudo para ele deveria ser partido, tendo em si mesmo um ‘quase ser’. Ele era realmente mesquinho, não porque quisesse ser, mas por ter sobrado apenas isso nele. A maldade estava impregnada dessa forma em seu âmago. E é nessa conjuntura que Medardo faz o que bem entende com seu povo. Qualquer ato que não o agrade pode ser motivo para resultar em morte.  São tantas, que só chegam a diminuir quando ele se ‘apaixona’ por Pamela. Na realidade, o que deseja o visconde é apenas a vontade de possuir um objeto para si, pois o que deseja com a moça é fazer dela o que bem entender.

O visconde disse consigo mesmo: ‘Acontece que entre os meus sentimentos intensos não tenho nada que corresponda àquilo que os inteiros chamam de amor. E se para eles um sentimento tão idiota possui tanta importância, o que para mim poderá corresponder a isso, certamente será magnífico e terrível’. E decidiu apaixonar-se por Pamela. (...) Mas os pensamentos que ele formulara friamente não devem nos induzir a enganos. Ao ver Pamela, Medardo sentira um vago movimento do sangue, e havia recorrido àqueles argumentos com uma espécie de pressa assustada.

Pamela, ao saber que Medardo a quer, pede, em vão, ajuda aos seus pais. Porém, o visconde já os havia convencido e, como era de praxe, aterrorizado para que a filha que tanto amavam se tornasse sua mulher. A doce e ingênua Pamela foge e vai morar na floresta. E esse é o momento em que vai se dar a representação da figura partida ao meio do visconde. Onde tudo irá descambar para a dualidade, muito bem representada por Italo Calvino. A parte boa, o seu lado esquerdo, que irá ficar sendo conhecido como ‘O Bom’ surge, para raiva e desatino do ‘Mesquinho’, como acaba ficando conhecido a parte direita de Medardo.

por Maurilio

A parte esquerda aparece nos arredores e começa a fazer o bem para toda a população. Muitos ficam a achar que ele está doente da cabeça e que deve estar sofrendo com ataques de dupla personalidade. Ninguém, até o momento, havia percebido que a parte ‘oposta’, a parte boa, do outro visconde, do que era companheiro da morte, havia aparecido. O primeiro a identificar isso fora o sobrinho, que ao tentar ajudar a parte boa, que havia sido mordido por uma aranha vermelha, acaba por ajudar a parte ruim, que estava a pescar ali perto. Ficando, assim, sem entender o que havia se passado. Como poderia ter se livrado do veneno da aranha tão rápido?

O Doutor Trelawney, que nunca havia movido um dedo sequer para ajudar quem quer que fosse, toma forma no romance e se apresenta como um verdadeiro descobridor de causos. Ele se interessa pelo caso da aranha, pois a metade boa do visconde o teria ido visitar instantes antes da chegada do sobrinho, que lhe contou o que havia acontecido. O doutor entende que ambas as partes estavam vivas e que desconheciam o paradeiro de sua outra metade. Resolve, com isso, lançar-se aos estudos da anatomia humana, coisa que nunca havia feito desde que ficara perdido por aquelas terras.

À vista disso, depois que ficam sabendo que ambas as partes estão vivas, o que veremos são as ações sendo feitas e desfeitas pelos viscondes. Enquanto um resolve ajudar no arado, na colheita, aos doentes, o outro se põe a desfazer tudo. Sendo impossível a convivência dos dois no mesmo território. Outro problema que surge é a paixão dos dois por Pamela. Sendo impossível conviver perto um do outro, é marcado um duelo para que apenas uma parte sobreviva: a boa ou a ruim.

Italo Calvino soube bem montar a dualidade que aparece em sua obra. Entendendo que os humanos não são apenas bons ou ruins, leva ambas as partes até as suas ruínas. A luta, que ocorre no último capítulo do livro, é ao mesmo tempo hilária e séria. Hilária porque ao vermos duas partes de um só ser combatendo, cada qual tendo que se apoiar em alguma coisa para conseguir remeter a espada contra o outro é, no mínimo, algo engraçado, e séria, porque a luta entre os dois nos mostra um homem que combate a si mesmo.

O leproso soprou o chifre: era o sinal; o céu vibrou feito uma membrana repuxada, os esquilos nas tocas afundaram as garras no húmus, as pegas sem tirar a cabeça de sob as asas arrancaram uma pena da axila provocando dores, e a boca da minhoca mordeu o próprio rabo, e a víbora se picou com seus colmilhos, e a vespa rompeu o ferrão na pedra, e cada coisa se voltava contra si mesma, a geada das poças se congelava, os líquens se petrificavam e as pedras viravam líquen, a folha seca se fazia terra, e a goma espessa e dura matava as árvores sem piedade. Assim, o homem se arrojava contra si mesmo, com ambas as mãos armadas de uma espada.

Tal natureza improvável de existir, como essa figura que chega a ser medonha, que é o Visconde, quando entrando em divergência consigo próprio faz a natureza entrar em desequilíbrio, daí o relato do que acontecia com bichos e plantas, no momento da luta. Tal desarmonização da natureza se dá, acreditamos, para mostrar que fazer o homem lutar contra si, olhar para dentro de si e tentar desvendar os seus próprios mistérios é algo que desarmoniza, não só a si próprio, como o que está a sua volta. É, talvez, a representação nítida da dualidade, o embate entre as duas forças, que Calvino quer deixar claro.

Ao final da luta ambos morrem. Todos os têm por mortos. O único que pula de alegria, que sorri, ao final do duelo, é o Doutor Trelawney, que solicita que levem os corpos para o castelo, pois ele tem algo a fazer. Irá por em prática as suas habilidades, que eram desconhecidas de todos, para unir novamente o Visconde partido ao meio:

Depois de meia hora levamos de maca para o castelo um único ferido. O Mesquinho e o Bom estavam vendados estreitamente juntos; o doutor tivera o cuidado de combinar todas as vísceras e artérias de ambas as partes, e depois com um quilômetro de curativos os unira tão intimamente que parecia, mais que um ferido, um antigo morto embalsamado.

Feito isso, teremos o visconde por inteiro, mas sem deixar de ser “nem mau nem bom”, mas sim “uma mistura de maldade e bondade, isto é, aparentemente igual ao que era antes de se partir ao meio”. O Visconde então vive, não estava de todo morto, mas ele não deixa de ser, consequentemente, como todo ser humano, bom e mal. Toda a narrativa parece se encaminhar para que entendêssemos o quanto é necessário que algo nos faça conhecer a nós mesmos tão profundamente. E esse conhecer a si próprio poderia ficar esquecido na obra de Italo Calvino. Apesar de parecer uma história simples ou divertida, como o autor queria, algo fica dito nas últimas frases do livro, pelo sobrinho do visconde, que ao longo do romance vem sempre sendo esquecido, apesar de ser ele quem conta a história.

Ao contrário, em meio a tantos fervores de integridade, eu me sentia cada vez mais triste e carente. Às vezes a gente se imagina incompleto e é apenas jovem.


O autor, que nos deixa preocupados a todo instante com as revelias do Mesquinho e com as dúvidas do Bom, acaba por fazer com que esqueçamos o sobrinho, que desde o início é marcado como o abandonado, o que não tem pai nem mãe, ou qualquer pessoa a quem possa chamar de família. Preocupamo-nos tanto com o visconde que está partido ao meio que deixamos de lado o sobrinho, inteiro, mas que possui o espírito partido, pela falta de atenção, pela falta de carinho. Logo ele, que é a voz que comanda toda essa história mirabolante.

Calvino nos surpreende, porque tudo é muito bem arquitetado. Deixar o sobrinho de lado fazia, talvez, parte do plano da narrativa. Não dar atenção para o sobrinho é fundamental para que Medardo di Terralba seja o foco, é deixar visível que a nossa incompreensão sobre nós mesmos inicia cedo, que preocupamo-nos sempre em saber se agimos da forma correta ou errada, se estamos sendo bons ou maus. O que importa somos nós mesmos. Apesar de nos imaginarmos incompletos, algumas vezes, como o sobrinho, não nos descobrimos na pele dele, porque nos pomos no lugar de Medardo, queremos ser Merdardos, queremos ser totalmente bons ou totalmente ruins. Mas não há ser humano que seja apenas bom ou apenas ruim. Alguns poderão indagar: Mas e os loucos, os psicopatas, os assassinos, não são pessoas ruins? Respondemos que não sabemos, serão eles somente mesquinhos? Será que eles não possuem nada de bom em si? Será que o padre, a freira, o médico, o inocente, também não possui nada de ruim? Não são eles humanos? Aparentemente, o que deve nos importar, após a leitura do romance, é conseguir achar o meio-termo, mesmo sabendo que é quase impossível, porque temos que entender: somos bons e ruins, às vezes mais isso do que aquilo e vice-versa.