21 de janeiro de 2013

Diante do nada, breves apontamentos diante de tudo



Diante do Nada, publicado quando Oscar Niemeyer tinha 92 anos, pode não ser uma obra-prima da literatura mas é, com certeza, um ato de amor. Um ato de amor a um país, a uma causa e, principalmente, à humanidade. E não é preciso concordar com todas as ideias do arquiteto para admitir que o amor é possível.  

O conto dirige o leitor para um período sinistro da história do Brasil. Homenageia quem lutou contra a opressão e ensina aos mais novos ou aos mais distraídos acerca de uma época em que a palavra liberdade também significava muita coragem e ousadia. Acompanham o texto ilustrações do próprio autor.

Niemeyer ensina. E não é imparcial. Ensina como quer e as suas aspirações literárias são esclarecidas na apresentação quando afirma que a sua intenção foi apenas elucidar todos aqueles que o abordam e querem saber o que pensa «da vida, dos homens, deste universo fantástico que nos cerca».

Diante do Nada «é a história de um jovem que se preocupa com o mundo e seus semelhantes e que no drama do ser humano se integra, lutando desesperadamente».

O nome do protagonista é escolhido com mestria: Way. Way é o Brasil grandioso, universal e descomplexado que admite entre os seus Raimundos, Franciscos e Pedros, os Wagners, os Ayrtons e os Yuris. Way é caminho, é rumo. Way é justiça.

Way, na verdade, não era o seu nome, mas um apelido que a sua semelhança com o escritor Hemingway justificava.

A parecença com um americano é marcante. Por isso é que Way também é justiça. A justiça que condena as políticas de um país, mas, lúcida, sabe valorizar um seu natural, conferindo ao herói da história parecença com este.



   Way dá aulas numa universidade do Rio de Janeiro, mas, por razões políticas, parte para Coqueiral, no Nordeste. Antes da partida, o seu colega Gregório afirma que os que pretendem uma transformação política e social «insistem em realizar o impossível».

A resposta de Way inicia um recurso utilizado ao longo do conto, em que o autor, nunca escondendo as suas simpatias, antipatias e tendências políticas, através dos diálogos das personagens, apresenta nomes e acontecimentos, numa quase obra didática dentro da obra literária, que transportam o leitor para a ditadura militar:

Não sei, Gregório, às vezes é preciso arriscar. Se Fidel não arriscasse, até hoje Cuba estaria nas mãos dos americanos. Vou para o Nordeste. Um camarada do meu pai me convidou. Disse que tem um bar junto da praia, que a areia é branca, que vou gostar. Foi muito ligado ao pai, foram presos juntos, torturados no DOPS, é pessoa de muita confiança.

Outro bom exemplo do recurso atrás referido é a resposta de Way a frei Sabino, religioso que afirma ao protagonista sentir «grande atração pelo comunismo» e que «só a ideia de Deus» os separa.

– Onde tu moravas?
– Eu morava no Rio. Em Laranjeiras, na Rua Pereira da Silva. Minha mãe morreu cedo e foi com meu pai que passei a juventude. Primeiro frequentei a universidade na Praia Vermelha, onde depois passei a lecionar. Lembro coisas daquele período da minha vida, como os locais que frequentava. O Café Lamas, o Cinema Politeama no Largo da Machado … Rua Pinheiro Machado, Largo do Paissandu e a praia. E ali ficava, sentado na murada, esperando os amigos, a olhar o mar, os barcos que passavam, as garotas que surgiam queimadas pelo sol. Naquele tempo, a Avenida Litorânea ia até à cidade. Um passeio maravilhoso que o jardim do Burle Marx esqueceu.
Em casa, era meu pai, preocupado com os meus estudos. Como o adorava! Lembro-me a olhá-lo com ternura, vendo com tristeza que os seus cabelos escasseavam, que novas rugas apareciam no seu rosto envelhecido. E uma vontade de abraçá-lo, de impedir que o tempo continuasse a maltratá-lo, me invadia. Um dia, Sabino, cheguei em casa e ele desaparecera levado pelo DOPS. Durante meses, tentei encontrá-lo, sem resultado. E aí talvez esteja o motivo da revolta de que você me acusa.
Meu pai era do PCB e eu o segui com o mesmo entusiasmo. Recordo as reuniões no nosso apartamento, e eu a escutá-los na sala ao lado. Gostava de ouvi-los, de vê-los com suas roupas surradas, mas todos altivos, desprezando confortos. E como se ajudavam mutuamente! Como dividiam, como irmãos, tudo o que lhes sobrava!
Certa vez, o pai me levou a um comício. Tinha apenas sete ou oito anos e fiquei maravilhado. A praça repleta, bandeiras vermelhas, faixas por toda a parte, e Prestes a falar como um iluminado. Depois, em casa, o pai me disse: “Prestes é um patriota, um amigo do povo. Quando crescer, meu filho, você vai compreender tudo isso. Agora, é melhor jogar o seu futebol! Eu era meio-campo e você vai ser atacante.” E hoje, pelo tom com que falou, acho que compreendi o que ele quis dizer com aquela palavra.

A recordação do passado não explora apenas os acontecimentos da vida cruel. Alcança também outra realidade através de uma intertextualidade que tanto é manifestada pela lembrança que o protagonista tem de Jacinto, «seu velho conhecido personagem de Eça de Queiroz», como pela chegada de uma encomenda que «era um disco de Chico Buarque, com uma música de protesto fantástica: Apesar de você».

Em Coqueiral, Way sensibiliza uma população sofrida para a necessidade da luta contra a opressão. O bar de Zequinha é o local de reunião dos que se vão juntando para conspirar contra a ditadura. Mas as conversas passam também pela religião e por Deus, em diálogos que Way mantém com Sabino, e que fazem lembrar as conversas que Oscar Niemeyer manteve com Leonardo Boff.

− Deus, meu irmão, está dentro de todos nós.
− Ah, Sabino! Não acredito nessa, não! Dentro de nós, o que existe é um ser oculto que a genética explica, a nos levar para o bem ou para o mal de acordo com nossas velhas heranças. Quando me irrito, sou capaz de partir para a violência. […] É claro que o homem pode se adaptar às regras da sociedade e conter seus impulsos, mas, quando falhar esse instrumento de controle, aí ele vai assumir sua verdadeira identidade.
− Nada disso! – respondeu Sabino. – Somos responsáveis pelos nossos defeitos e qualidades. E, se formos justos e amantes de Deus, estaremos no caminho do céu. Agora, Way, sou eu a te fazer uma pergunta: já imaginaste como seria este mundo sem a religião?
− É! Acho que imaginei. Todos dentro da verdade irrecusável.

Ambos anseiam pela libertação e pela dignidade do ser humano. Ambos, Way e Sabino, e ambos, Niemeyer e Boff. O próprio nome de Sabino poderá ter sido uma homenagem aos teólogos da libertação, já que a sua sonoridade se aproxima de Sobrino, apelido de Jon Sobrino, um dos grandes expoentes da Teologia da Libertação.



O que, com toda a certeza, não é especulação, é a homenagem que o autor faz ao seu amigo Darcy Ribeiro.

− Way, todos gostaram muito do artigo que escreveu para a revista da universidade, onde você elogia Darcy Ribeiro e critica alguns intelectuais. Foi patrulhamento?
− Nada disso. Darcy é um homem genial, progressista. Uma das maiores figuras da intelectualidade brasileira.

A coragem do cidadão anónimo também não é esquecida. Os que não dão aulas em universidade, os que não têm um passado familiar de luta, os que não crescem com uma consciência política desenvolvida, mas, mesmo assim, desejam a mudança, são encarnados, entre outros, por Tião.

Em mais um diálogo onde personagens da história do Brasil servem de pretexto à narrativa e onde esta aproveita aquelas para ensinar e, muito em particular neste caso, educar, Tião é visto como o herói do povo, símbolo de todos os que, querendo, podem ajudar à mudança. No mesmo diálogo, Oscar Niemeyer faz uma curiosa referência a Brasília, parecendo que o escritor não poupou o arquiteto. Será a tentativa do filho matar o pai? Ou é a grandeza intelectual do autor que não se coíbe de submeter à análise uma obra da qual foi um dos mais altos responsáveis? Édipo está longe, há muito que abandonou Tebas. A grandeza de espírito do autor é que permitiu a intromissão literária na sua obra de arquiteto consagrado.

Discutiam quem tinha sido o melhor presidente do país, e Miguel dizia:
− JK. Foi ele quem criou Brasília, a estrada Belém-Brasília. Foi ele quem criou o otimismo e riu para o povo a vida inteira.
− Não, nada disso – replicou Tuca. – Brasília foi um erro. O congresso deveria trabalhar numa grande cidade, onde o povo tivesse condições de aplaudi-lo ou contestá-lo. Brasília é uma cidade de funcionários. Uns, de boa vida, batem palmas. Os outros estão fodidos mesmo.
E Miguel insistia:
− JK criou riqueza; vá a Goiânia e você vai ver o progresso que ele previa.
Mas Tuca gritava:
− Para mim o melhor poderia ser o Jânio, e a prova é que logo o tiraram de lá.
− Vocês esquecem o Jango – disse Zequinha. – Se ele tivesse continuado, estaríamos com o socialismo.
− Para mim – arrematou Sabino, − o melhor foi o Getúlio. Foi o mais importante. Teve um princípio de vacilação política, mas logo se recuperou apoiando os aliados contra o nazismo. Criou as estatais e morreu pelo povo. Leram a carta que ele deixou? Olhem, já falamos muito de presidente. Tu, Tião, quem escolherias?
− Não sei. Qualquer um que tivesse coragem de virar a mesa.
A conversa acabou. Num canto, Sabino confidenciou a Way:
− Devagar nossos camaradas vão se atualizando, e Tião é o melhor. Tu viste como ele compreendeu o problema com mais objetividade do que eu, respondendo direto “qualquer um que tivesse coragem de virar a mesa”? Sinto que alguns aguardam os acontecimentos sem pressa, mas ele, ao contrário, os espera impaciente, pronto para agir.
− Sinto o mesmo. É forte, decidido, com ele podemos contar.

E contaram. Contaram no momento de epifania em que tudo foi possível. Em que a ação ultrapassou a convicção ou em que a convicção, de tão forte, permite determinadas ações. Ou seria o medo, o medo da tortura, no DOPS. Aconteceu numa noite em que bateram à porta de Way informando de que as portas da igreja de Sabino estavam abertas e que o carro da Polícia Federal se encontrava estacionado em frente daquela.

Chegados à igreja, depararam-se com um triste cenário: Sabino, no chão, com a cara cheia de sangue, e três elementos da polícia a esvaziarem gavetas. Way não hesitou e atirou mortalmente sobre os três. Zequinha e Tião entraram em pânico mas Way acalmou-os.

− Não tínhamos outra alternativa; ou eles, ou nós torturados no DOPS, como aconteceu com os nossos velhos camaradas. Agora é agir rapidamente.

Way gizou rapidamente um plano para se livrar dos corpos.

− Eu vou levá-los no carro da polícia. Tião leva meu carro para a volta, e você, Zequinha, cuida de Sabino, limpa tudo aqui, pega o seu barco e vai me encontrar na praia.

Aparentemente, tudo correu como o previsto mas, com o passar do tempo, as suspeitas de que as mortes teriam a mão de Way começaram a surgir e a adensarem-se. Começa a ser perseguido pela polícia. Mesmo assim, ainda tem tempo para a namorada, Lili. Frei Sabino é sondado por um informador, outro tipo de figura muito fomentado pelas ditaduras. Desconhecidos começam a circular por Coqueiral.




Mas Way mantém a esperança, não se importa que o acusem de repetir as fantasias de Dom Quixote ou dos Três Mosqueteiros, e sonha com a luta, mesmo que solitária para não comprometer ninguém.

Os dias passam e o ambiente começa a deteriorar-se. Way é aconselhado a dormir noutro local «mas, naquele sábado, o dia estava tão bonito e o céu tão azul, que resolveu ir para a casinha da praia, certo de que a estrada estaria mais movimentada e tudo tranquilo».

Os companheiros apareceram e fez-se festa. Os problemas políticos foram, por momentos, esquecidos e o dia passou em ambiente de alegria.

Já só os dois, abraçam-se na praia sob o céu que começa a ficar estrelado. Mas o inesperado surgiu. Way sentiu a chegada de soldados. Pegando Lili pelo braço, correram para a casa, onde «dez ou quinze soldados de metralhadora à mão já estavam em frente a ela alinhados».

− Sai. Você matou três colegas nossos!

Way saiu a atirar «como um louco», mas uma rajada de metralhadora não lhe deu outra hipótese para o momento que não a morte. Way morreu. E nasceu a lenda.

O narrador está agora em 1999, quase trinta anos após os acontecimentos. No bar do Zequinha, jovens discutem a miséria, o desemprego, os assaltos, as empresas estatais vendidas abaixo do seu valor.

Se Way estivesse vivo, diria com certeza: “Quando a vida se degrada e a esperança foge do coração dos homens, só a revolução”..





:::Diante do Nada:::106 pgs.:::

:::Editora Revan::: 1999

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