31 de outubro de 2012

A triste alegria de Drummond, a nossa alegria

Pensar na Poesia de Carlos Drummond de Andrade é lembrar de referências evidentes e repetidas ad infinitum em instâncias diversas, como os livros didáticos para o ensino médio e para os acadêmicos de letras, pelo menos, além da ainda recente internet, que oferece referências parecidas e possibilita ter acesso a outras. Como não lembrar do Drummond gauche do “Poema de sete faces” ou no pretenso engajamento de A rosa do povo, com flor furando asfalto? Poderíamos ainda destacar outros poemas, como “Procura da poesia”, “Sentimental”, “Explicação”, “Necrológio dos desiludidos do amor”, “Sentimento do mundo”, “José”, “Aliança”, entre tantos outros que circulam de maneira discreta nas energias que sustém a poesia.

Dizer que Drummond é um grande poeta pode partir da aferição do volume dantesco de seus escritos ou mais especificamente do contato afetivo que se deve manter com seus poemas. Até então, contávamos com 23 livros de poesia. Os 25 poemas da triste alegria, publicados pela editora Cosacnaify neste ano de 2012, se materializaram em edição fac-similar apresentada e comentada pelo também poeta Antônio Carlos Secchin e vêm a aumentar o conjunto. O mais curioso, talvez, seja que a edição conta com comentários feitos pelo próprio Drummond anos mais tarde (o livro seria de 1924 e os comentários de 1937). E, acredite, os comentários são ferozes: “Salvo um poema, que resultou de um movimento de sensibilidade (pág. 34) os demais podiam deixar de ser escriptos. São exercícios à moda do tempo, tímidos e mecânicos” (p. 23). O que, nós leitores, faremos com poemas tão desprezados pelo próprio signatário? Lê-los é uma saída.

O primeiro poema da coletânea, intitulado “A sombra do homem que sorriu”, parece abrir o conjunto colocando em cena um Drummond lírico que não daria valor aos passos e pedras do caminho, como um ser que decide apagar a tristeza da memória pessoal e também da coletiva:

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Os “tapetes”, objetos que remetem à casa do homem, mas também a outros espaços visitados e pisados no estar a ser, contrapõem-se à taça que, com bebida, deve ser degustada na própria suspensão da percepção do tempo e do espaço. Humaniza-se, entretanto, quando entende o fluir do tempo e com ele brinda, “com desdém”, mas aceitando o jogo imposto. O homem passou, de certo, mas e os poetas e seus escritos, esses ficam? O Drummond poeta e seus escritos aqui estão.

O tempo, afinal, também é evocado em outros poemas da coletânea, como o “Quase-nocturno, em voz baixa”:

O crepúsculo, como momento em que temos a presença do dia que termina e da noite que se aproxima, é um estado de alma que reflete o silêncio que se curva perante a majestade do tempo e de seu fluir incessante. Ambiente de incertezas, em que as coisas ganham nova roupagem, o crepúsculo parece fazer definhar o corpo do interlocutor (ou interlocutora, o ser admirado). Ou antes, a repetição desse crepúsculo é que age e veste de “cinza transparente” as mãos admiradas e envelhecidas.

Em “Como se eu fosse um poeta resignado”, a tristeza envolta em resignação é o que conduz o poema. O eu poético nesse momento se mostra com certa repulsa a atitudes antes frequentes. Agora, ele diz, está resignado. O que parece contraditório. Tal conformismo não teria engendrado uma escrita de tal ordem. Em todo caso, a relação que pode ser entendida com outro ser, ou mesmo com a própria escrita (evocada por ser objeto e fim da figura do poeta), era antes “devotamento” e “submissão”:

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No decorrer do poema percebemos que não existe uma mudança significativa após o fingimento de atitude (fingimento, pois que o título introduz a ação com um “como se”...). Assim, entendemos que a relação do poeta com a escrita (figurativamente feminina) não é tranquila a ponto de ser conformada, resignada.

Como o título do volume sugere, a tristeza é parte fundamental dos poemas habitantes. Em “Minha tristeza de porcellana”, o poeta convida a tristeza para cear como a uma dama se pede a companhia. Chega a pedir-lhe beijos e carícias transformando-a em coisa amada. De outro modo, podemos fazer a leitura contrária e pensar que a coisa amada é, agora, referenciada como a tristeza do poeta, aquilo que faz extremo mal, mas sem o que não se pode viver.

Foram poucos os poemas percorridos, porém pudemos entrar um pouco em sintonia com os escritos que encontramos na edição. Eu não arriscaria incluir nestas palavras um julgamento de valor tão assertivo como foi o do próprio Drummond. Entretanto, arrisco-me a dizer que de certo a maturidade trouxe certa cautela no uso de alguns temas, como a linguagem a serviço de imagens eróticas (relativizar o termo). Celebremos, hoje, não somente o dia D, mas a contribuição inequívoca que a poética de Drummond trouxe para a literatura e para os amantes de poesia. Se por literatura entendemos novos ângulos de se olhar o mundo, então Carlos Drummond de Andrade soube olhá-lo como poucos. Desviemos as pedras para pisar nessas letras vermelhas de paixão pela arte e pelo seu ofício.