Golpe Haikai: Poesia letal, espada de samurai.
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X X X X X - 5Como se diz, “toda tradução é uma traição”, e no Haikai, isso é radicalizado. A tradução de um Haikai para outro idioma, sempre implica uma pobreza no sentido, quando não, uma alteração dele, já que nosso Alfabeto (ABC...), e modelo de escrita na horizontal, da esquerda pra direita, (“Gutemberguiano”, como diria Leminski) não dá conta da experiência estética e escrita quase que artesanal do Haikai. O Haikai não é só escrito, ele é também desenhado.
No Brasil, para se ter uma ideia, foram feitas várias traduções da poesia acima, conhecida como a “Antologia da Rã”, que pode parecer aparentemente simples, caso o que seja levado em consideração seja o "texto" (Mas um Haikai nunca é só um texto).
FURU IKE YA
KAWASU TOBIKOMU
MISU NO OTO
Uma das traduções mais conhecidas é a de Paulo Leminski:
"Velha lagoa
O sapo salta
O som da água”
No entanto, por incrível que possa parecer, essa é apenas uma das dezenas de traduções de uma das poesias mais famosas do oriente. Ela aparenta ser simples, mas como dizia Paulo Leminski, de poesia e de Zen, não se deve entender, se deve experimentar. Algumas das traduções da Antologia da Rã são:
VELHA
LAGOA
UMA RÃ
MERG ULHA
UMA RÃ
AGUÁGUA
Décio Pignatari
“O velho tanque
rã salt’
tomba
rumor de água”
Haroldo de Campos.
“Um templo, um tanque musgoso;
Mudez apenas cortada
Pelo ruído das rãs,
Saltando à água. Mais nada...”.
Wencelau de Moraes
“Velho tanque abandonado ao silêncio...
lança-se a rã num mergulho:
quase inaudível som da água.”
Antônio Nojiri
“Embaixo do tanque
Não encontro o que procuro
Uma rã me assusta.”
Clóvis Moreira dos Santos
“Rã
No lago, mergulha
uma rã... Na água, a manhã
verde-azul borbulha...”.
Cyro Armando Catta Preta
No entanto, nem só de Japão e Zen vive o Haikai. O estilo ganhou adeptos no mundo todo, e é venerado por escritores de diversos estilos e movimentos literários. Jack Kerouac, por exemplo, eterno ídolo do movimento beatnick, autor de clássicos como “On the Road” (Pé na Estrada) e “The Town and the City” (Cidade Pequena, Cidade Grande), se aproximou da cultura oriental e do Zen budismo no final de sua vida, e dessa aproximação surgiu sua paixão pelo Haikai, que deu origem a um tipo de Haikai ocidentalizado, e por que não dizer: “Haikai Beatnick”. Em sua última entrevista, publicada na The Paris Review, em 1968, cedida a Ted Berrigan, Kerouac explica um pouco sobre o que é o Haikai, e como ele escreve os seus.
TED BERRIGAN — Você disse que haiku (Haikai) não é escrito espontaneamente, mas trabalhado várias vezes e revisado. Isso se aplica a toda a sua poesia? Por que o método para escrever poesia se diferencia do método para escrever prosa?
KEROUAC — Não, primeiramente, escrever em haiku fica melhor quando se revisa e trabalha várias vezes. Eu sei, eu tentei. Deve ser completamente econômico, sem floreios e linguagem rítmica, deve ser como uma simples foto com três linhas. Pelo menos foi assim que os mestres mais velhos fizeram, gastando meses em três linhas, e dizendo:
No barco abandonado,
O granizo
Bate violentamente.
Isso é Shiki. Mas para o meu verso regular em inglês, eu fiz como uma prosa corrida, e para obter isso, usei um caderno do tamanho do manuscrito original de “Vanity of Duluoz”. O rolo é feito de um papel fino de centenas de metros, para a forma e comprimento do poema, assim como um músico de jazz tem que colocar sua letra numa determinada quantidade de barras, dentro de um refrão, que se repete ao longo do texto, mas neste caso o refrão não para quando a folha termina. E finalmente, na poesia você pode ser completamente livre para dizer o que quiser, você não precisa contar uma história, pode usar trocadilhos secretos.
TED BERRIGAN — Como você escreve Haikai?
KEROUAC — Haikai? Você quer ouvir Haikai? Veja, você tem que comprimir em três linhas uma história enorme. Primeiro você começa com uma situação Haikai — então você vê uma folha, como eu tinha dito a ela (Stella) outra noite, caindo nas costas de um pardal durante uma forte tempestade de inverno em Outubro. Uma grande folha cai nas costas de um pequeno pardal. Como você pode comprimir isso em três linhas? Agora, em japonês você tem que comprimir em 17 sílabas. Não precisamos fazer isso em inglês, pois não temos o mesmo sistema silábico que o Japonês. Então você diz: “Pequeno pardal” — você não tem que dizer “pequeno” todo mundo sabe que um pardal é pequeno, então você diz:
“Pardal
Com grande folha em suas costas —
Tempestade”
Não está bom, não funciona, esqueça.
“Um pequeno pardal
Quando repentinamente uma folha toca suas costas
Do vento.”
Ah, assim que se faz. Não, está um pouco longo. Viu? Já está um pouco longo, Berrigan, entende o que quero dizer?
TED BERRIGAN — Parece haver uma palavra extra. Que tal tirar o “quando”? Ficaria:
Um pardal
Uma folha de outono repentinamente toca suas costas —
Do vento!
Ei, isso está bom! Acho que “quando” era a palavra extra. Você pegou a ideia aqui, “Um pardal, uma folha de outono de repente”— não temos que dizer “de repente” não é?
“Um pardal
Uma folha de outono toca suas costas —
Do vento!”
“Aqueles pássaros empoleirados
sobre aquela paliçada
foram todos morrer.”“Desci da minha
torre de marfim
E não achei mundo nenhum”“No meu armário de remédios
a mosca de inverno
está morta de velhice.”
“Café e cigarro
Meditação Zen
Pra quê?”
Em terras brasileiras, o Haikai da “América do Sul, do sal e do sol”, teve como destaque, três escritores que se dedicaram à produção desse gênero poético: Millôr Fernandes, Alice Ruiz e Paulo Leminski. Milton Viola Fernandes, mais conhecido como Millôr Fernandes, carioca, nascido em 1923, sob o signo de Leão, foi desenhista, humorista, dramaturgo, escritor, tradutor, e jornalista brasileiro. Sob sua inserção no universo da escrita Haikai, Millôr afirma:
“Meu interesse pelo Haikai como forma de expressão direta e econômica começou em 1957, quando eu escrevia uma seção de humor (Pif-Paf) na revista O Cruzeiro. Passei a compor alguns quase semanalmente, usando, porém, apenas os três versos da forma original, não me preocupando com o número de sílabas.”
Novamente, nota-se um tipo diferente de Haikai, que diferente do original japonês, não se preocupa com o número de sílabas. Uma característica marcante de seus Haikais, é que geralmente eles têm um toque de humor, e muitos deles, são versos rimados, preocupação esta que não existe no Haikai tradicional.
“Olha,
Entre um pingo e outro
A chuva não molha.”
“No ai
Do recém nascido
A cova do pai.”
“Prometer
E não cumprir:
Taí viver.”
“Esnobar
É exigir café fervendo
E deixar esfriar.”
Alice Ruiz, por sua vez, é poeta e tradutora, e aos 26 anos já publicava seus poemas em jornais e revistas, lançando seu primeiro livro “Navalhanaliga”, em 1980, aos 34 anos. Foi casada com o também poeta Paulo Leminski. Até agora, Alice Ruiz tem 21 livros publicados, entre poesias, traduções e uma história infantil. Selecionar alguns Haikais de Alice Ruiz, não é tarefa fácil, no entanto, estes são alguns:
“Quem ri quando goza
é poesia
até quando é prosa.”
“Você deixou tudo a tua cara
Só pra deixar tudo
Com cara de saudade.”
“Travesseiro novo
primeiras confissões
a história do amigo”
“Amigo grilo
sua vida foi curta
minha noite vai ser longa”
Por último, Paulo Leminski, virginiano, nascido no ano do macaco em 24 de agosto de 1944, foi escritor, poeta, crítico literário, tradutor, professor, músico, compositor, faixa preta de judô e boêmio. Como um típico filho de Virgo, tentava levar cada uma das atividades que se dedicava à perfeição. Como biógrafo, escreveu as biografias de Bashō, Cruz e Souza, Jesus e Trotski com uma identidade de escrita inconfundível. Impossível não reconhecer Leminski nas análises que este fazia da poesia do simbolista e erótica de Cruz e Sousa, no processo de humanização que este deu à Jesus Cristo, no amor que este tinha ao escrever sobre o Haikai, Bashō e a cultura Zen, e no entusiasmo que ele tinha ao escrever sobre a revolução russa e seu herói: Trotski.
Leminski se aperfeiçoou no Haikai, e o fez como nenhum outro escritor brasileiro. Conseguia dizer em três linhas, o que talvez nenhum “Poema Sujo” tenha dito, e sabia dominar e brincar com as palavras como ninguém. Dizia que todos os idiomas e técnicas que aprendeu, todos os livros que leu, tudo o que aprendeu sobre a escrita e a poesia, foi para que, com o tempo, aprendesse a escrever uma poesia letal, que atingisse o leitor num só golpe. Todo o aprendizado de Leminski foi para aprender a diminuir. Escrever menos, falando mais. Obviamente, não poderia e nem pretendo dar conta da escrita e da poesia de Leminski, mas deixo aqui alguns de seus Haikais.
“Isso de querer ser
Exatamente aquilo que a gente é
Ainda vai nos levar além”
“Tudo dito
Nada feito
Fito e deito”
“luxo saber
Além destas telhas
Um céu de estrelas”
“Ameixas
ame-as
ou deixe-as”
“A noite – enorme
Tudo dorme
Menos teu nome.”
Por fim, este que considero o melhor Haikai escrito por Leminski, e um dos melhores Haikais nacionais. Ainda hoje, consigo lembrar a sensação que tive ao ler esses três versos. Acredito que nenhum romance tenha me dito tanto, ou causado tanto impacto:
Se não fossem
Meus haikais.por Dassayeve Lima